Artigo Comentado

Diarreias infecciosas: diagnóstico e manejo

Uma análise das recomendações americanas para o diagnóstico e manejo das diarreias infecciosas na realidade brasileira

Autor/a: Eduardo Alexandrino Servolo de Medeiros

Indice
1. Página 1
2. Referências bibliográficas
Introdução

A diretriz da Sociedade Americana de Doenças Infecciosas (IDSA - Shane et al, 2017) 1 teve como objetivo atualizar as condutas para o acompanhamento de lactentes, crianças, adolescentes e adultos com diarreia infecciosa aguda ou persistente. Esta diretriz foi baseada na força de recomendação e na qualidade da evidência científica de artigos publicados. Para a construção do documento foi ouvido um painel de especialistas da IDSA. A seguir, Medeiros (2020) elaborou uma análise da diretriz americana com ênfase nas recomendações sobre o diagnóstico e terapêutica antimicrobiana das diarreias infecciosas e a sua aplicação na realidade brasileira.

A diarreia infecciosa transmitida por alimentos e água contaminada causada por patógenos bacterianos entéricos continua sendo um grande problema de saúde pública em todo o mundo.2 Segundo o relatório do Centers for Disease Control and Prevention (CDC), estima-se que 48 milhões de casos de diarreia infecciosa, 128.000 hospitalizações e 3.000 mortes ocorram nos Estados Unidos anualmente.3 Também, estudos mostraram que cerca de 700.000 mortes por ano ocorrem na África causadas por doenças transmitidas por alimentos e pela água.4 O problema é ainda mais grave em países onde há falta de práticas de higiene para manipulação dos alimentos, leis inadequadas de segurança alimentar, sistemas regulatórios frágeis, falta de recursos financeiros para investir em equipamentos mais seguros e saneamento básico deficiente.2,3,4

Das definições e formas de contaminação

A Organização Mundial da Saúde define diarreia como três ou mais evacuações com fezes líquidas em 24 horas, ou evacuações mais frequentes do que o normal para o hábito intestinal do indivíduo.5

A diarreia aguda representa uma resposta da mucosa intestinal a diversas agressões, incluindo infecções, medicamentos, doenças inflamatórias e isquemia, porém a principal causa de diarreia aguda é a infecção, causada por vírus, bactérias ou suas toxinas, protozoários e verminoses.

A diarreia infecciosa determina manifestações clínicas variadas e debilitantes, variando de um desconforto abdominal até uma doença grave que resulta em morte por depleção de volume e sepse.

Apesar dos recursos diagnósticos atuais, a abordagem do paciente com diarreia aguda depende principalmente do raciocínio clínico, da cuidadosa anamnese, principalmente dos antecedentes epidemiológicos como viagens nos últimos 30 dias, hábitos alimentares, exposição a patógenos ou toxinas, e do exame físico. Crianças em creches, residentes de asilos, manipuladores de alimentos e pacientes hospitalizados recentemente têm alto risco de desenvolver doenças diarreicas infecciosas. Práticas sexuais que incluem contato anal e oral-anal receptivos aumentam a possibilidade de inoculação retal direta e transmissão fecal-oral de vírus, bactérias e protozoários.

Avaliação clínica

O principal objetivo da abordagem ao paciente adulto com diarreia aguda é distinguir uma diarreia clinicamente importante de outras doenças benignas autolimitadas. O início, a duração, a gravidade e a frequência da diarreia devem ser cuidadosamente avaliados, com especial atenção às características das fezes (por exemplo, aquosa, sanguinolenta, com muco ou pus).

O paciente deve ser avaliado quanto aos sinais de desidratação, incluindo diminuição da diurese, sede, tontura e alteração do nível de consciência. Em pacientes com síndrome hemolíticourêmica, causada principalmente pela E. coli O157, a desidratação está associada a um risco aumentado de insuficiência renal grave e diálise. O vômito é mais sugestivo de doença viral ou causada pela ingestão de uma toxina bacteriana pré-formada. Os sintomas mais sugestivos de diarreia invasiva bacteriana (inflamatória) incluem febre, tenesmo e fezes com sangue e muco.

Conforme foi discutido na diretriz, indivíduos com febre ou diarreia sanguinolenta devem ser avaliados para enteropatógenos para os quais o tratamento com antimicrobianos têm benefício clínico, como as infecções por Salmonella spp., Shigella spp. e Campylobacter spp.

A febre entérica, causadapela Salmonella typhi ou Salmonella paratyphi, deve ser considerada quando um indivíduo febril tem um histórico de viagens para áreas nas quais esses microrganismos são endêmicos. Eles podem ser transmitidos tanto por alimentos contaminados como pela água não tratada. Embora a diretriz seja dirigida à população dos Estados Unidos e países desenvolvidos, é pertinente extrapolar estas orientações para populações de áreas de países em desenvolvimento com boas condições sanitárias. Habitualmente, nos grandes centros urbanos brasileiros, encontramos água tratada em boas condições, mas exibem taxas baixas de esgoto tratado. Entretanto, nas regiões subdesenvolvidas, o saneamento básico é muito precário e a água não é tratada, o que favorece a infecção por aqueles microorganismos.

Testes diagnósticos

Exames laboratoriais para o diagnóstico da etiologia da diarreia não são recomendados rotineiramente em pacientes com diarreia sem complicações. Porém, estão indicados nos casos mais graves que requerem tratamento com antimicrobianos. Adicionalmente, pacientes com diarreia persistente, que tenham duração de 14 dias ou mais devem ser investigados para infecção parasitária intestinal. Da mesma forma, indivíduos que tomaram antimicrobianos nas oito a doze semanas anteriores e apresentam quadro de diarreia, devem ser avaliados para infecção por Clostridioides difficile.

O material ideal para o diagnóstico laboratorial da diarreia infecciosa é uma amostra de fezes líquidas ou pastosas. Para detecção de bactérias, se uma amostra de fezes diarreica não puder ser coletada, um swab retal pode ser usado. Técnicas de biologia molecular são mais sensíveis e menos dependentes do que a cultura pela qualidade do material colhido. Para identificação de agentes virais e protozoários e toxina de C. difficile, fezes frescas são preferidas.

O exame de fezes, cultura ou testes moleculares, devem ser realizados para pesquisa Salmonela, Shigela, Campylobacter, Yersinia, C. difficile e E. coli produtora de toxina Shiga (ECPTS) em pessoas com diarreia com sangue ou muco, acompanhada de febre, cólicas abdominais intensas ou sinais de sepse. A cultura de fezes com ágar Sorbitol-MacConkey ou como alternativa o ágar cromogênico é recomendada para E. coli produtora de toxina Shiga O157. Hemoculturas devem ser solicitadas para lactentes, em pacientes com sinais de sepse ou quando há suspeita de febre entérica, imunodeprimidos e indivíduos que viajaram ou tiveram contato com viajantes de áreas endêmicas de febre entérica.

O guia da IDSA também discutiu o papel das técnicas moleculares, geralmente, são mais sensíveis e menos dependentes da qualidade da amostra de fezes como a cultura. Novos testes multiplex de amplificação de ácidos nucleicos (MP-NAATs), podem detectar vários patógenos e toxinas, podem distinguir entre as toxinas Shiga 1 e 2 e, alguns ensaios, também distinguem E. coli O157. Porém, na nossa realidade, o custo elevado das técnicas moleculares dificultam o seu emprego na rotina diagnóstica. Além do mais, devem ser avaliadas com muito cuidado por serem testes de alta sensibilidade e podem levar à indução de um falso diagnóstico etiológico da diarreia. Outro alerta, que frequentemente os clínicos utilizam na sua prática, a pesquisa de leucócitos fecais não deve ser utilizada para estabelecer diagnóstico diferencial da causa infecciosa, por exemplo vírus ou bactérias.

Tratamento

A terapia antimicrobiana empírica em pacientes imunocompetentes é recomendada para casos graves: presença de febre, dor abdominal, diarreia com sangue ou pus ou sinais de sepse.

Os pacientes devem ser tratados empiricamente com antimicrobianos de amplo espectro imediatamente após a coleta sangue, cultura de fezes e de urina. A terapia antimicrobiana deve ser revisada e alterada de acordo com a sensibilidade do microrganismo identificado. O tratamento antimicrobiano para pessoas com infecções atribuídas a E. coli produtora de toxina Shiga O157 e outros microrganismos que produzem toxina Shiga deve ser evitado, pois existem evidências de piora com o tratamento antimicrobiano.1

O guia recomendou como terapia empírica nos casos de diarreia grave, em adultos, uma fluoroquinolona, como ciprofloxacina ou azitromicina. Sulfametoxazol-trimetoprima é recomendado como segunda escolha na terapia empírica. No caso de diarreia dos viajantes, depende dos padrões locais de sensibilidade dos microrganismos e do histórico de viagens. A recomendação da terapia empírica para crianças é uma cefalosporina de terceira geração (Ceftriaxona).

Entretanto, fazemos as seguintes considerações sobre a opção de uma quinolona como terapia de primeira escolha. Existe uma preocupação, pois até 85% dos pacientes com diarreia por C. difficile têm história de uso de antimicrobianos nos últimos 28 dias.6

Embora diversos antimicrobianos tenham sido implicados, os fortemente associados ao desenvolvimento de diarreia por C. difficile são: cefalosporinas; inibidores de beta-lactamases, clindamicina e quinolonas.6

Além disso, quinolonas têm sido implicadas com diversos eventos adversos graves desde lesões de tendão a aumento do risco de aneurisma de aorta e dissecção da aorta, particularmente em idosos.7 A European Medicines Agency (EMA)8 divulgou um alerta sobre as fluoroquinolonas por estarem associadas à ocorrência de eventos adversos tardios (até meses ou anos após o início da antibioticoterapia), graves, incapacitantes e potencialmente irreversíveis, que afetam vários sistemas, órgãos e sentidos. As reações adversas mais graves incluem tendinite, ruptura de tendão, artralgia, dor nas extremidades, distúrbio da marcha, neuropatias associadas com parestesia, depressão, fadiga, problemas de memória, distúrbios do sono e deficiência auditiva, visual, incluindo do paladar e olfato. Os danos nos tendões, especialmente no tendão de Aquiles, mas também em outros tendões, podem ocorrer dentro de 48 horas após o início do tratamento com fluoroquinolona, mas o dano pode ser tardio e diagnosticado vários meses após a interrupção do tratamento. Os pacientes idosos, com insuficiência renal, transplantados de órgãos sólidos ou aqueles tratados com corticosteroide apresentam maior risco de lesão nos tendões.8

Assim, consideramos o sulfametoxazol-trimetoprima uma boa opção para o tratamento das diarreias infecciosas desde que os dados locais demonstrem sensibilidade a este antimicrobiano.

A resistência ao sulfametoxazoltrimetropima é a principal limitação para o seu uso, principalmente nas diarreias infecciosas por Shiguela.

Diarreias persistentes, geralmente por mais de 14 dias, deve ser avaliada para Cryptosporidium spp, Giardia lamblia, Cyclospora cayetanensis, Cystoisospora belli, e Entamoeba histolytica. O diagnóstico etiológico das diarreias persistentes pode ser realizado pelo exame direto de fezes ou empregando imunofluorescência direta e, quando disponíveis, testes moleculares de amplificação de ácidos nucleicos.

Imunodeprimidos são mais propensos a ter doença grave ou prolongada. Diarreia em imunodeprimidos pode ter diversas causas como bactérias, vírus, protozoários, vermes e fungos dependendo do estado de imunodeficiência. Além disso, pessoas com infecção pelo HIV com comprometimento imunológico têm maior risco de diarreia devido a E. coli entero-invasora, Cryptosporidium, Microsporídia, Cystoisospora belli (anteriormente Isospora belli), além de citomegalovírus e do complexo Mycobacterium avium (MAC).

O guia do IDSA recomendou sulfametoxazoltrimetoprima como primeira escolha para o tratamento dos patógenos: Cyclospora cayetanensis, Cystoisospora belli e Yersinia enterocolitica, e segunda escolha para S.typhi ou S. paratyphi e Shigella.

A hidratação com água, eletrólitos e nutrientes perdidos durante a diarreia é essencial no tratamento da mesma. Durante a diarreia, o transporte associado de sódio e glicose ao longo do intestino permanece intacto e leva a um aumento da absorção de água, permitindo a reidratação oral. A reidratação oral tem sido reconhecida como um método de salvar milhões em todas as faixas etárias, independentemente da causa, e é recomendado pela OMS. Naqueles pacientes com vômitos intensos ou sepse, a hidratação endovenosa rápida é requerida.

Tratamentos sintomáticos com medicações que diminuam motilidade, náuseas ou vômitos podem ser utilizados quando o paciente é adequadamente hidratado. Drogas que diminuem a motilidade (por exemplo, loperamida) não devem ser administradas para crianças com menos de 18 anos de idade com diarreia aguda. Também não deve ser utilizada na suspeita de megacólon tóxico.

Preparações probióticas podem ser administradas para reduzir os sintomas, a gravidade e a duração da diarreia em adultos imunocompetentes e crianças. A suplementação oral de zinco também reduz a duração da diarreia em crianças de 6 meses a 5 anos de idade que residem em países com alta prevalência de deficiência de zinco ou que apresentam sinais de desnutrição.

Medidas de prevenção

Medidas de prevenção também foram discutidas no guia do IDSA. A higiene das mãos deve ser realizada depois de usar o banheiro, trocar fraldas, antes e depois de preparar a comida, antes de comer, depois de manusear lixo ou itens de roupa suja, e depois de tocar em animais ou suas fezes ou seu ambiente, especialmente em locais públicos como zoológicos. Medidas para prevenção e controle de infecções, incluindo o uso de luvas e avental e higiene das mãos com água e sabão ou álcool-gel devem ser utilizadas no cuidado de pessoas com diarreia. Importante salientar que o álcool-gel não tem atividade contra Clostridioides, a medida adequada é a lavagem das mãos com água e sabão.

A vacina contra o rotavírus deve ser administrada para todos os bebês desde que não exista contraindicação conhecida. No Brasil, a vacina para rotavírus é recomendada aos 2 meses e aos 4 meses. Duas vacinas contra febre tifóide (oral e injetável) são licenciadas nos Estados Unidos, mas não são recomendadas rotineiramente. Outras vacinas, como para cólera também são discutidas na diretriz.


VII. Conclusão

Finalmente, é importante salientar que o diagnóstico etiológico das diarreias agudas diferenciando colonização e infecção ainda é um desafio, mesmo com as técnicas moleculares disponíveis. Uma boa anamnese com dados epidemiológicos bem caracterizados, aliados à evolução do quadro clínico são fundamentais para a conduta terapêutica. Na maior parte das vezes as diarreias infecciosas não requerem tratamento com antimicrobianos, porém deve ser indicado nos casos de maior gravidade, principalmente quando existir sangue ou pus nas fezes ou sinais de sepse. A escolha empírica do antimicrobiano continua um desafio, pois vai depender dos dados locais de resistência microbiana.

 


O autor:

Dr. Eduardo Alexandrino Servolo de Medeiros
CRM 53440 SP - RQE 25237

Médico Infectologista, Professor Associado da Disciplina de Infectologia, Universidade Federal de São Paulo. Presidente da Sociedade Paulista de Infectologia – Gestão 2019 - 2020