Causas clínicas e tratemtno

Deficiência de ferro sem anemia

Refere-se a baixos estoques de ferro que não atendem às necessidades do organismo, independentemente da presença de anemia ou não.

Autor/a: Abdulrahman Al-Naseem, Abdelrahman Sallam, Shamim Choudhury y Jecko Thachil

Fuente: Clinical Medicine 2021 Vol 21, No 2: 10713

Indice
1. Texto principal
2. Referencia bibliográfica
Introdução

A deficiência de ferro (DF) é a deficiência nutricional mais prevalente e um importante precipitante da anemia (anemia ferropriva: AF). Estima-se que essa deficiência sem anemia (DFSA) seja pelo menos o dobro da AF comum. A AF é a apresentação mais comum da DF; portanto, há um equívoco de que os dois termos são sinônimos.

A DF é um termo amplo e refere-se a baixos estoques de ferro que não atendem às necessidades de ferro do corpo, com ou sem anemia.

Embora a DF reduza a síntese de hemoglobina (Hb), ela só é classificada como anemia quando os níveis de Hb caem abaixo de certos valores de corte, que a OMS estabeleceu em 130 g/l para homens, 120 g/l para mulheres não gestantes e 110 g/l para mulheres grávidas. No entanto, sintomas de anemia, como fadiga, podem estar presentes sem níveis anêmicos de Hb.

O reconhecimento da DFSA como diagnóstico clínico é fundamental para garantir o tratamento adequado, principalmente para pacientes com doenças crônicas, como insuficiência cardíaca, em que a DFSA pode aumentar a mortalidade em longo prazo.

Definição diagnóstica de deficiência de ferro

A ferritina é um indicador das reservas de ferro e é o biomarcador mais sensível e específico para avaliar a DF. A OMS considera baixo nível de ferritina <15 µg/l em adultos e <12 µg/l em crianças. Entretanto, na prática clínica, quando os níveis de ferritina são de 30 µg/, justifica o estudo da DF.

A ferritina é um reagente de fase aguda que aumenta no soro durante a inflamação crônica. Os seus valores de corte na DF são aumentados para 100 µg/l neste estado. índices de saturação de transferrina (IST) 20% também identificam DF.

Em condições inflamatórias crônicas, quando os níveis de ferritina são de 100 a 300 µg/l, o IST deve ser usado para o diagnóstico de DF pois os níveis séricos de ferro flutuam ao longo do dia, logo, não devem ser usados ​​para diagnóstico. Outros testes úteis incluem hepcidina, receptor de transferrina solúvel e conteúdo de hemoglobina dos reticulócitos, mas estes não são amplamente utilizados. Embora a hepcidina seja geralmente baixa ou normal na DF absoluta, ela ajuda a distingui-la da DF funcional.

O receptor solúvel da transferrina é um valioso indicador de DF, pois, ao contrário da ferritina, não é afetado pela inflamação, no entanto, é um teste demorado e não está amplamente disponível. Quando os níveis de hemoglobina estão normais, o baixo teor de hemoglobina nos reticulócitos permite a identificação precoce de DF em depósitos funcionais e sugere a necessidade de ferro, pré-anemia e risco de desenvolver AF.

A distinção entre AF e DFSA é baseada no uso de pontos de corte estritos de hemoglobina. No entanto, os médicos devem considerar o fato de que os intervalos normais dessas células foram estabelecidos usando dados populacionais. Essencialmente, o que pode ser um nível normal de hemoglobina para uma pessoa pode ser anormal para outra, especialmente se o paciente tiver um nível na faixa normal baixa, mas os níveis normais são mais altos.

Pacientes com DF devem ser tratados independentemente de serem explicitamente definidos como anêmicos.

As faixas de corte de hemoglobina são úteis, mas as limitações devem ser levadas em consideração enquanto a avaliação dos pacientes deve ser individualizada.

Causas da deficiência de ferro

O ferro é encontrado em depósitos de armazenamento e depósitos funcionais. O depósito de armazenamento é formado pelo sistema reticuloendotelial, formado pelo fígado, baço e gânglios. Os reservatórios funcionais são constituídos por eritrócitos e células da medula óssea, músculo cardíaco e esqueleto. O ferro é absorvido no duodeno por transportadores específicos e, ligado às moléculas de transferrina, atinge os depósitos funcionais e de armazenamento.

A DF pode ser absoluta ou funcional.

A DF funcional é denominada quando os depósitos de armazenamento são deficientes em ferro devido à ingestão reduzida, necessidades aumentadas, absorção reduzida ou perda excessiva. A DF absoluta também está associada a baixos níveis de ferro nas reservas funcionais.

Na DF funcional, a carga é a inflamação crônica, causando a liberação de citocinas e hepcidina. Este último causa a DF através do bloqueio de um exportador de ferro conhecido como ferroportina. Existem duas maneiras pelas quais esse bloqueio ocorre. Um, reduzindo a absorção de ferro no duodeno e outro, causando a retenção de ferro dentro dos depósitos de armazenamento.

Isso significa que, apesar dos níveis normais de ferro dentro dos depósitos de armazenamento, os depósitos funcionais são deficientes em ferro e não podem usar o ferro armazenado para a demanda dos processos vitais do corpo.

As causas da DF podem ser agrupadas nas seguintes categorias: ingestão dietética inadequada, necessidades corporais aumentadas, absorção reduzida, inflamação crônica e perda crônica de sangue.

A ingestão inadequada pode resultar de dietas deficientes em ferro, como as dietas veganas cada vez mais populares, ou do aumento das necessidades de ferro, como observado em crianças em crescimento e mulheres grávidas. Por outro lado, atletas que praticam esportes exigentes têm maior necessidade de ferro e têm maior risco de desenvolver DF, principalmente pelas perdas pela urina e suor, durante a atividade física.

A absorção de ferro ocorre principalmente no intestino delgado proximal, para o qual é necessária a presença de ácido gástrico suficiente para a redução de Fe3+ a Fe2+, que é mais facilmente absorvido. Pacientes submetidos à cirurgia bariátrica são altamente suscetíveis à DF devido a áreas de diminuição da capacidade absortiva superficial e/ou redução da secreção de ácido gástrico.

Menor ingestão de ferro na dieta pós-operatória aumenta ainda mais o risco de DF. Menos comumente, a infecção por Helicobacter pylori também pode causar deficiência devido à redução da absorção de ferro e perda de sangue.

Pacientes com gastrite autoimune também sofrem de perda de secreção de ácido gástrico, de modo que o ferro não é absorvido de forma eficaz.

Por outro lado, o uso crônico de inibidores da bomba de prótons ou antagonistas do receptor de histamina-2 pode aumentar o risco de DF por um mecanismo semelhante.

Foi relatado que o consumo de café, chá ou cálcio (em suplementos ou laticínios) reduz a absorção de ferro. A importância dessas dietas como causas de DF às vezes é negligenciada.

A inflamação crônica, como na doença celíaca, doença inflamatória intestinal (DII) e insuficiência cardíaca, aumenta a produção de hepcidina, bloqueando os transportadores de ferro e reduzindo a absorção, levando ao aprisionamento de ferro nos depósitos de armazenamento. Em última análise, isso resulta na DF funcional.

A DF também pode ser devido à perda significativa ou crônica de sangue oculto, que é comum em mulheres com menorragia, e é ainda mais amplificada na obesidade e durante o crescimento rápido na adolescência, o que pode esgotar os estoques de ferro. Também é comum em doadores de sangue frequentes e mulheres grávidas. Outras causas são: sangramento nasal, sangramento gastrointestinal (p. ex., angiodisplasia), procedimentos cirúrgicos, lesões, acidentes e uso de dispositivos intrauterinos, anticoagulantes ou antiplaquetários.

Características clínicas

Está bem estabelecido que o ferro desempenha um papel indispensável na síntese de hemoglobina e mioglobina. Menos apreciado é o seu papel na função mitocondrial, incluindo a síntese de cofatores e enzimas necessárias para a respiração celular. Consequentemente, células altamente metabólicas, como os miócitos do músculo cardíaco e esquelético, dependem do ferro para uma função ideal. Demonstrou-se que a DF reduz a respiração aeróbica e a atividade enzimática do ciclo do ácido cítrico na insuficiência cardíaca avançada.

Outros estudos também mostraram o impacto negativo da DF no metabolismo celular. Uma pesquisa com 40 pacientes com insuficiência cardíaca crônica com DF demonstrou aumento da energia do músculo esquelético após a suplementação de ferro. Embora muitos processos celulares dependam do ferro, é provável que sejam afetados apenas na DF grave, na qual o ferro provavelmente está presente. Mais pesquisas são necessárias para esclarecer melhor os efeitos da DFSA nos processos celulares e como seus efeitos podem estar relacionados à apresentação clínica.

Os sintomas da DF, como fadiga e intolerância ao exercício, são inespecíficos, dificultando a identificação se a causa é a DF ou uma doença crônica, como insuficiência cardíaca, que pode apresentar sintomas.

Hipotireoidismo, depressão e exaustão também podem ser responsáveis.

Por outro lado, é difícil distinguir a DFSA da DF absoluta com base apenas nos sintomas devido à sua sobreposição; a principal diferença clínica é que os sintomas são mais graves na DF absoluta. Uma revisão sistemática recente concluiu que, na DFSA, a suplementação de ferro melhora as medidas subjetivas de fadiga.

Em pacientes com DFSA que têm insuficiência cardíaca ou doença inflamatória intestinal coexistentes, a suplementação intravenosa de ferro melhora o controle dos sintomas e melhora a qualidade de vida, respectivamente. No entanto, as evidências sobre o efeito da suplementação de ferro na atividade física, muitas vezes avaliadas por testes de captação máxima de O2, são mistas.

A DF grave também pode causar miopatia cardíaca e esquelética, o que é prejudicial na insuficiência cardíaca. Isso se deve à remoção prejudicada de espécies reativas de O2, aumentando o estresse oxidativo e, assim, enfraquecendo o músculo cardíaco. Em última análise, a atrofia dos músculos cardíacos, periféricos e respiratórios leva à redução da tolerância ao exercício e dispneia ao esforço. Na insuficiência cardíaca, a função mitocondrial já está prejudicada e a sobreposição do efeito DF pode ser deletéria.

Deficiência de ferro na gravidez

A deficiência absoluta de ferro (DF) aumenta a morbidade materna, bem como o risco de desfechos ruins na gravidez, incluindo restrição de crescimento intrauterino, prematuridade e baixo peso ao nascer.

Comparadas com mulheres grávidas sem DF, mulheres grávidas com estoques de ferro diminuídos ou DFSA no início da gravidez foram mais propensas a desenvolver DF no pré e pós-natal e ter um bebê de baixo peso ao nascer. A anemia é uma das manifestações tardias da DH. Durante o crescimento fetal e quando o ferro está em falta, ele é direcionado principalmente para os tecidos eritropoiéticos, em detrimento do resto do corpo.

Portanto, a DF pode existir em outros órgãos, como o cérebro, não coincidente com os níveis de hemoglobina. Essa deficiência tem sido associada a doenças mentais e funções neurocognitivas prejudicadas, como memória diminuída e processamento neuronal mais lento, o que pode ser devido à DF independentemente da anemia.

A DF pós-natal está relacionada ao estado de ferro neonatal e à carga fetal de ferro e está associada a efeitos cognitivos e comportamentais ao longo da vida, que continuam a ser mensuráveis ​​até a idade de 19 anos, mesmo com reposição de ferro pós-natal.

A suficiência de ferro é vital durante toda a gravidez, especialmente a partir da 32ª semana de gestação, quando começa a mielinização rápida do cérebro, e durante toda a infância. Consequentemente, as mães devem ser examinadas e tratadas para DF antes da concepção.

O ferro pode ser substituído durante a gravidez com ferro por via oral a cada 2 dias no primeiro trimestre, a fim de melhorar a absorção materna. Se a DF persistir, o ferro intravenoso deve ser administrado no segundo e terceiro trimestres, o que tem se mostrado seguro. Por outro lado, após o nascimento, os recém-nascidos devem ser examinados e tratados quanto à DF, para evitar danos neurocognitivos permanentes.

 Deficiência de ferro pré-operatória

Ao contrário da DF absoluta pré-operatória, os efeitos da DFSA pré-operatória nos resultados cirúrgicos não receberam atenção suficiente. O objetivo do manejo hematológico dos pacientes vai além de como detectar anormalidades de ferro após a cirurgia, reduzindo assim transfusões e complicações pós-operatórias. No entanto, as recomendações muitas vezes subestimam a importância da DFSA pré-operatório.

A DFSA pré-operatória em uma cirurgia abdominal ou cardíaca aumenta o risco de infecção pós-operatória, fadiga, transfusão e anemia. Um estudo recente descobriu que o tratamento de curto prazo com uma combinação de ferro intravenoso, alfa eritropoietina, vitamina B12 e ácido fólico reduziu as transfusões de sangue em pacientes com DFSA pré-operatório submetidos a cirurgia cardíaca eletiva.

Por outro lado, a suplementação oral pré-operatória de ferro, vitamina C e ácido fólico de pacientes não anêmicos submetidos à cirurgia ortopédica reduziu as transfusões de sangue. O British Committee for Standards in Hematology recomendou a suplementação de ferro para pacientes com DFSA (ferritina <100 µg/L e IST <20%) que planejam se submeter a cirurgia com perda esperada de Hb >30 g/L.

Uma declaração de consenso internacional sobre DF perioperatória e anemia enfatizou a importância de detectar e gerenciar DFSA antes da cirurgia. A cirurgia eletiva com perda significativa de sangue esperada deve ser adiada até que a DF e/ou anemia sejam corrigidas para reduzir o risco de anemia pós-operatória. A recomendação é que o ferro oral seja utilizado quando a cirurgia estiver programada para mais de 6 semanas; caso contrário, a suplementação intravenosa é melhor.

A colaboração entre os médicos da atenção primária e secundária é muito importante para o manejo eficaz da DFSA pré-operatório. Idealmente, os exames devem ser realizados na atenção primária, para evitar atrasos na cirurgia. Os autores argumentam que a conscientização da deficiência de ferro sem anemia deve ser aumentada entre os médicos no futuro, especialmente na atenção primária, o que poderia reduzir a sua prevalência não diagnosticada. Isso minimizaria o risco de DFSA e DF, além de melhorar o manejo hematológico do paciente.

 Instruções para o tratamento

A DHSA deve ser tratado quando mal identificado, visando Ferritina 100 mg/l.

O tratamento deve ser continuado até que os níveis de ferritina se normalizem e os sintomas desapareçam. Os pacientes devem ser aconselhados sobre dieta e reposição oral de ferro. A reposição intravenosa de ferro deve ser considerada para pacientes sintomáticos com DFSA refratário. Além disso, os níveis de ferritina devem ser verificados a cada 6 a 12 meses após o tratamento, especialmente em mulheres menstruadas e aquelas que consideram a gravidez.

A dieta é importante na gestão de DFSA. Os pacientes devem consumir carne, aves ou peixe pelo menos 5 vezes por semana, com produtos complementares de grãos integrais, legumes e vegetais. Eles também podem ser encaminhados a um nutricionista para avaliação e aconselhamento detalhados. No entanto, a suplementação dietética por si só pode não ser suficiente para corrigir a deficiência, sendo necessária a reposição de medicamentos. O ferro oral está associado a efeitos colaterais gastrointestinais, como constipação, diarreia, dispepsia e náusea, que têm sido associados à baixa adesão ao tratamento.

O uso de doses únicas em dias alternados em vez de doses múltiplas em dias consecutivos resulta em aumento da absorção e melhor regulação dos níveis de hepcidina em mulheres com depleção de ferro.

A dose oral recomendada é de 28 a 50 mg de ferro/dia ou 100 mg em dias alternados por 25 dias.

Os níveis de hemoglobina, ferritina e proteína C reativa devem ser verificados 6 a 8 semanas após o início do tratamento, além dos índices de hemácias, para avaliar a resposta ao tratamento. Se a suplementação oral for inadequada, a reposição intravenosa de ferro e o encaminhamento a um especialista devem ser considerados.

Uma vez corrigidos os níveis de ferritina, os pacientes devem ser acompanhados com exames de sangue a cada 6 a 12 meses, com reintrodução da reposição, se necessário. O ferro endovenoso é indicado quando o ferro oral é ineficaz e também no DFSA, para compensar a diminuição da absorção após o bypass gástrico, pois a mucosa intestinal está danificada, e também em outras condições inflamatórias crônicas, como insuficiência cardíaca, em que a hepcidina está elevada.

O ferro intravenoso demonstrou ser eficaz e bem tolerado na DFSA, e pode ser mais eficaz do que as preparações orais. Cerca de 1% dos pacientes apresentam reações menores à infusão, necessitando de interrupção da infusão e controle dos sintomas.

A gravidade das reações é muitas vezes exagerada devido aos riscos associados ao ferro dextrano de alto peso molecular, mas estes foram agora substituídos por formulações substancialmente mais seguras. No Reino Unido, são ferro dextrano de baixo peso molecular, sacarose de ferro, carboximaltose de ferro e isomaltosídeo de ferro (conhecido nos EUA como derisomaltose de ferro).

Ferumoxytol, que foi retirado dos mercados europeus em 2015, continua disponível nos EUA e demonstrou ser seguro. Excluindo ferro dextrano de alto peso molecular, o risco de reações graves é muito baixo. No entanto, é essencial administrar ferro intravenoso em um ambiente onde tais efeitos adversos possam ser adequadamente controlados. Tal como acontece com o ferro oral, o monitoramento é essencial.

Conclusão 

Apesar da simplicidade da patogênese e do tratamento, a DFSA muitas vezes está além do escopo da suspeita clínica. É importante não apenas divulgar a condição na comunidade médica, mas também desenvolver diretrizes e protocolos para ajudar os médicos. Para isso, é necessária uma maior colaboração entre médicos especialistas e médicos para identificar e tratar a DHSA, principalmente antes da operação e no contexto da gravidez.


Resumo e comentário objetivo: Dra. Marta Papponett