A imprecisa fronteira entre a medicina e a vida

O olhar dos outros

A cerca da medicina, academia e a vida privada

Autor/a: Daniel Flichtentrei

Existe uma medicina que é praticada nos corredores dos hotéis cinco estrelas e nas academias. É muito interessante, deslumbrante, devora a cabeça. Está cheio de pessoas valiosas e inteligentes. Mas também está infectada de fanfarrões e egocêntricos. É sedutora e mentirosa. Cheira a perfume de loja gratuita. É falso como o espelho da madrasta da Cinderela.

Mas também há pessoas...

A mulher que te mira com seus enormes olhos azuis e te pede ar. O homem que segura o peito e fecha a mão como uma garra sobre o terno, que te olha perguntando se isso é morte. A mãe que coloca nos braços um bebê encharcado de suor, tremendo no meio de uma convulsão. Ela grita com você, sem dizer uma palavra, com a boca e as mãos cerradas, que você sabe, que pode, que você é Deus e por isso ela te dá isso. Uma velhinha magricela foi deixada em uma cama de hospital que ninguém jamais veio ver. Ela está te observando e pede que você segure a sua mão. Que você a toque. Porque morrer sem outra pele tocando a sua é desumano, indigno, miserável. E você aperta seus dedos magros e espera que a morte a leve embora em paz. O velho que te pergunta se os filhos dele estão lá fora. Ele fica esperando sua resposta com os olhos fixos nos seus. Você primeiro fica em dúvida, mas diz a ele que sim, que passaram a noite inteira acordados, que estão preocupados, que devem amá-lo muito pela forma como perguntaram sobre ele. Que mais tarde você os deixará visitá-lo, mesmo que por pouco tempo. Mas não há ninguém de fora. Você mentiu para ele. Nunca houve ninguém.

Depois vem a secretária e te exige que complete um atestado. Te ligam do sanatório para avisar que a prefeitura não pagou, que você não vai poder cobrar pelo trabalho do mês.

Mais tarde você entrega a guarda e vai para casa.

A rua te parece estranha, inóspita. Você perdeu os códigos de coexistência. Você não entende nenhuma das preocupações das pessoas. Nem suas tristezas nem suas alegrias. O mundo está coberto por um véu opaco. Uma atmosfera nublada. Você abre a porta e sua esposa o recebe como se desde o momento em que você saiu - há 36 horas - nada tivesse acontecido em sua vida. Existe um intervalo de tempo que ninguém, exceto você, percebe. Ela avisa que seu filho está com febre, que a mensalidade da escola chegou e que você tem que ligar para o serviço de máquina de lavar. Você vai se trancar no banheiro. Ela continua falando com você pela porta. Grita para você não fazer xixi no vaso sanitário e colocar a roupa suja no cesto. Você se olha no espelho. Pena de você. Suas costas doem.

Agora você está sozinho no banheiro. Lá fora seu filho chora. Na TV, um idiota grita e ri alto. Você tira a roupa. Você abre o chuveiro. Você deixou a água afogar sua vontade de gritar. Você se seca, veste seu pijama e procura na agenda o telefone do técnico da máquina de lavar. Você tenta lembrar quantos quilos seu filho deve pesar. Você conta gotas de Paracetamol: dez, onze, doze...


Este relato forma parte do livro “A verdade e outras mentiras” da coleção de Medicina Narrativa da IntraMed.