Fisiopatologia, diagnóstico e manejo

Supercrescimento bacteriano do intestino delgado

Distúrbio clínico resultante do aumento no número e/ou alteração no tipo de bactérias no intestino delgado.

Autor/a: Daniel Bushyhead e Eamonn M. Quigley

Fuente: Small Intestinal Bacterial Overgrowth

Introdução

O supercrescimento bacteriano do intestino delgado (SIBO, sua sigla em inglês para Small Intestinal Bacterial Overgrowth) é um distúrbio clínico resultante do aumento no número e/ou alteração no tipo de bactérias no intestino delgado. Geralmente envolve a colonização com bactérias anaeróbicas que normalmente residem no cólon.

Como o seu diagnóstico é difícil de ser estabelecido uma vez que os sintomas mais comuns são encontrados em diversas afecções, falta um “padrão outro” ou um consenso. Por isso, Bushyhead e Quingley (2021) discutiram as visões atuais sobre fisiopatologia, diagnóstico e gerenciamento da SIBO e exploraram as controvérsias da associação entre SIBO e síndrome do intestino irritável (SII).

Fisiopatologia

Dentre os diferentes segmentos do trato gastrointestinal, a microbiota é distinta. Em hospedeiros saudáveis, a contagem de bactérias no intestino delgado proximal é de até 103 unidade de formação de colônias por mililitro (CFU/mL), enquanto o cólon pode abrigar até 1011 CFU/mL.

É importante que o intestino delgado mantenha um número bacteriano relativamente baixo, pois é neste local que ocorre digestão e absorção de nutrientes, sendo assim, não há uma competição entre microrganismos e hospedeiro. Para manter esse número, o intestino utiliza diferentes mecanismos de proteção, como:

  • A bile e o ácido gástrico inibem o crescimento de microrganismos ingeridos;
  • O peristaltismo e a fase III do complexo motor migratório digestivo impedem o movimento retrógrado de bactérias colônicas aeróbias;
  • A imunidade do hospedeiro ajuda a eliminar os patógenos.

Dada a variedade de mecanismos que impedem a colonização microbiana do intestino delgado, diversos fatores de risco podem ser citados, como:

  • Distúrbios de diminuição da produção de ácido gástrico, como gastrite atrófica.
  • Distúrbios pancreatobiliares, como pancreatite crônica e cirrose.
  • Distúrbios que impedem a motilidade, como esclerodermia, amiloidose e hipotireoidismo.
  • Anomalias anatômicas, como estenoses e fístulas.
  • Síndrome de imunodeficiência, como deficiência de IgA.

Quando a colonização microbiana patológica ocorre, ela resulta em variados distúrbios patológicos que se converte nos sinais e sintomas de SIBO. A lesão direta da mucosa por bactérias pode causar má absorção e enteropatia. A má digestão de carboidratos pode levar a inchaço, flatulência e diarreia resultante da fermentação dessas substâncias não digeridas pelas bactérias. Embora a lesão direta por toxinas bacterianas possa causar alterações nas vilosidades, a maioria das biópsias revela morfologia normal. A desconjugação do ácido biliar bacteriano pode causar má absorção de gordura e resultar em esteatorreia, perda de peso, deficiências de vitaminas lipossolúveis e osteoporose. A utilização bacteriana da cobalamina e a produção de análogos da cobalamina podem levar à deficiência de vitamina B12, associada à anemia megaloblástica e à neuropatia periférica. A produção bacteriana de folato pode resultar em níveis elevados dessa substância.

Diagnóstico

Embora não haja sintoma patognomônico da SIBO, geralmente, os pacientes relatam dor e distensão abdominal, flatulência e diarreia. Como estes não são exclusivos nem preditivos, o diagnóstico deve se basear em evidências objetivas de números patologicamente anormais e tipos de microorganismos no intestino delgado. E como a SIBO é, em parte, tratada com antibióticos, que carregam seus próprios riscos, é necessário identificar com precisão os pacientes que realmente se beneficiariam com esse tratamento.

Atualmente, uma contagem bacteriana maior que 103 unidades formadoras de colônia por milímetro (CFU/mL) foi proposta e adotada por alguns especialistas como diagnóstico da SIBO.

Alguns estudos investigaram se a cultura do aspirado de fluido jejunal poderia ser o método de escolha para o diagnóstico, no entanto, o procedimento é invasivo, caro e envolve os riscos da endoscopia e sedação. Ademais, para esse diagnóstico, a sensibilidade pode ser limitada se a SIBO estiver distribuída de forma irregular.

A lactulose normalmente não é absorvida no intestino delgado e, em vez disso, é metabolizada por coliformes para liberar hidrogênio e gás metano. Pacientes com SIBO podem, portanto, ter um pico precoce de hidrogênio ou metano exalado devido ao metabolismo da lactulose por uma flora anormal do intestino delgado. Por outro lado, a glicose é normalmente absorvida no intestino delgado proximal e metabolizado por bactérias em hidrogênio. Portanto, esses pacientes podem ter níveis elevados de hidrogênio exalado.

Sendo assim, de acordo com a declaração do Consenso Norte-Americano sobre testes expirados do hidrogênio, um aumento maior ou igual a 20 partes por milhão (ppm) da linha de base em neste elemento em 90 minutos é considerado positivo para diagnosticar SIBO. Um nível maior ou igual a 10 ppm em metano é considerado positivo para supercrescimento metanogênico. Assim, em vez de SIBO, o termo supercrescimento intestinal de metano (IMO) foi proposto no cenário de um teste positivo, que foi associado à constipação devido ao efeito inibitório do gás no trânsito intestinal.

Esses testes expiratórios requerem a aplicação de vários critérios rigorosos para os pacientes. Estes incluem evitar antibióticos por quatro semanas antes do teste; interromper fármacos procinéticos e laxantes uma semana antes do teste; evitar carboidratos complexos 12 horas antes do teste; e evitar o tabagismo e exercícios extenuantes no dia do teste, pois o primeiro pode aumentar e o segundo diminuir os níveis de hidrogênio respiratório.

Um fator importante que pode confundir a interpretação dos testes expiratórios de lactulose é o tempo de trânsito oro cecal. Se a lactulose chegasse ao ceco antes de 90 minutos devido ao trânsito acelerado, isso poderia explicar um teste respiratório de lactulose positivo em vez de implicar SIBO. Também é possível que a má absorção de glicose possa levar a um teste respiratório positivo de glicose.

Dadas as limitações dos testes respiratórios - incluindo o fato de não haver um padrão-ouro, tornando os cálculos de sensibilidade e especificidade discutíveis - as utilidades desses exames geraram controvérsia substancial. Atualmente, a comunidade médica se questiona se realmente pode-se definir com precisão o que é e o que não é SIBO.

Não só não há um padrão-ouro aceito, mas também há uma escassez de dados sobre o valor do aspirado e da cultura ou qualquer teste respiratório na previsão do resultado clínico, incluindo a resposta à terapia antibiótica. O contexto clínico é muito importante - em um paciente com um ou mais dos fatores de risco mencionados acima para SIBO e sintomas que sugerem má digestão/má absorção e/ou diarreia crônica, esses testes serão amplamente confirmatórios.

O problema de super diagnosticar o SIBO entre os sintomas inespecíficos e funcionais é o super tratamento. Enquanto os médicos aguardam um teste padrão-ouro para diagnosticar a doença, o teste respiratório é a primeira linha para confirmação da patologia.

Manejo

Quando o diagnóstico de SIBO é suspeito ou estabelecido, deve-se primeiro considerar uma causa putativa que possa ser corrigida. Sendo assim, os médicos devem abordar o maior número de fatores de risco modificáveis, como interrupção das bombas de prótons, o controle agressivo do diabetes e a remissão dos pacientes com doença de Crohn. Pode-se considerar o uso de procinéticos para estimular o trânsito intestinal em pacientes com distúrbios de motilidade gastrointestinal.

Em segundo lugar, deficiências nutricionais de vitamina B12, vitaminas lipossolúveis A/D/E/K e ferro devem ser identificadas e tratadas.

Embora não existam medicamentos específicos para curar a condição, a base do tratamento se dá por antibióticos orais. No entanto, ainda há poucos regimes estudados para a condição. O mais investigado é a rifaximina, por ser um fármaco sistêmico bem tolerado com baixa biodisponibilidade oral e cujos efeitos antimicrobianos podem ser aumentados na presença dos ácidos biliares. Uma revisão sistemática que incluiu doses variadas de 600 mg a 1.600 mg por dia com duração de 5 a 28 dias demonstrou que a taxa de erradicação geral foi em torno de 70,8%. No entanto, os investigadores observaram que a qualidade da maioria dos estudos era ruim.

Outros antibióticos que foram estudados para o tratamento incluem ciprofloxacina, norfloxacina, metronidazol, trimetoprima/sulfametoxazol, doxiciclina, amoxicilina-ácido clavulânico, tetraciclina e neomicina. Outras modalidades de tratamento que podem ter um benefício teórico na restauração da flora GI saudável, como modificação dietética, probióticos, prebióticos e até mesmo transplante de microbiota fecal (FMT) não foram adequadamente estudadas.

As taxas de recorrência de SIBO após o tratamento com antibióticos são relatadas como altas, mas, devido à miríade de incertezas em torno do diagnóstico e da eficácia da terapêutica, a precisão dessas taxas não é clara.

Figura 1: Algoritmo prático para diagnóstico e manejo da SIBO. H2 – hidrogênio; SIBO – Small Intestinal Bacterial Overgrowth; SII – síndrome do intestino irritável. Imagem adaptada de Bushyhead e Quingley (2021).

Relação entre SIBO e síndrome do intestino irritável

A alegação mais controversa relacionada à SIBO tem sido sua implicação na patogênese da SII. Um estudo demonstrou uma maior prevalência de testes respiratórios de lactulose positivos em pacientes com SII em comparação com controles saudáveis​. Além disso, a melhora significativa nos sintomas após a normalização dos testes respiratórios com antibioticoterapia sugeriu uma associação muito forte entre as duas doenças. Pesquisas adicionais esclarecendo as alterações microbianas trouxeram mais credibilidade para uma potencial associação.

Uma revisão sistemática de SIBO na SII questionou a validade dessa relação. Embora a prevalência agrupada de um teste respiratório de lactulose positivo tenha sido de 54%, a prevalência de aspirado jejunal positivo e cultura com um corte superior a 105 UFC/mL foi de apenas 4% e não superior aos controles, sugerindo que a associação depende da escolha do teste. Ademais, alguns estudos sugeriram que encontrar evidência de SIBO em pacientes com SII pode ser confundida pelo uso de inibidores da bomba de próton (IBP).

Outra revisão sistemática encontrou uma maior prevalência de SIBO em pacientes com SII quando comparados aos controles. Esses achados foram observados ao usar critérios de diagnóstico baseados em cultura (em ambos os pontos de corte de 103 e 105 UFC/mL) ou teste respiratório. Os investigadores também não encontraram nenhuma associação entre o uso de IBP e SIBO. No entanto, esses achados foram atenuados por evidências de baixa qualidade.

A eficácia da rifaximina na SII também foi usada para apoiar uma associação entre SIBO e SII; uma revisão sistemática demonstrou que esse antibiótico foi mais eficaz do que o placebo para os sintomas globais da SII. Como há alguma sugestão de que a fisiopatologia da síndrome do intestino irritável envolve anormalidade colônica em vez de fermentação do intestino delgado, é possível que a eficácia do fármaco se deve a um impacto nas populações bacterianas do cólon e não no intestino delgado. De fato, o modo de ação preciso da rifaximina na SIBO permanece pouco compreendido, pois os impactos no número de bactérias podem ser mínimos e os efeitos podem estar mais relacionados a perturbações do metabolismo bacteriano do que à supressão real de espécies ou cepas bacterianas.

A associação entre SIBO e SII permanece controversa. Se estão relacionadas, e se tal combinação é causadora ou apenas um efeito da SII, ainda não foi definitivamente julgado. Como a primeira carece de um padrão-ouro para diagnóstico e a segunda é um diagnóstico de exclusão baseado na sintomatologia que carece de um biomarcador validado, é impossível chegar a conclusões consistentes sobre qualquer associação putativa ou de sua ausência.