O supercrescimento bacteriano no intestino delgado (SIBO) é caracterizado por um aumento excessivo de bactérias nesta região, levando a diversos sintomas gastrointestinais. Sua etiologia é multifatorial e está associada a vários distúrbios, incluindo síndrome do intestino irritável, doença hepática gordurosa não alcoólica, pancreatite crônica, doença celíaca, obesidade e doença inflamatória intestinal. Embora os métodos de diagnóstico estejam em evolução, o manejo do SIBO continua sendo desafiador devido à falta de diretrizes clínicas consensuais. Para abordar essa lacuna, especialistas da região Ásia-Pacífico desenvolveram a primeira diretriz baseada em consenso, utilizando um rigoroso processo Delphi. O objetivo foi fornecer orientações para prática clínica, ensino e pesquisas futuras sobre o SIBO em escala global.
Declarações do consenso |
> Definição e epidemiologia
- O SIBO é definido como o crescimento de bactérias ≥ 105 unidades formadoras de colônias (UFC)/mL ou ≥ 103 UFC/mL (particularmente se coliformes estiverem presentes) em cultura quantitativa de aspirado do trato gastrointestinal superior. No entanto, é importante ressaltar que todos esses valores precisam de estudos de validação e de boa qualidade em diferentes populações em todo o mundo.
- O SIBO pode ter um limiar baixo ou alto, dependendo das contagens bacterianas. O primeiro é geralmente considerado como contagens ≥ 103 UFC/mL, enquanto o segundo implica contagens ≥ 105 UFC/mL. O uso de limiares variados tem produzido diferentes taxas de prevalência de SIBO em vários estudos.
- O espectro microbiológico no SIBO pode variar com base nas causas subjacentes. Com base no tipo de microflora, as bactérias cultivadas em indivíduos com SIBO podem ser amplamente classificadas como de acordo com a sua coloração. As bactérias Gram-positivas podem incluir Streptococcus, Staphylococcus, Enterococcus, Micrococcus, Lactobacillus, Corynebacterium, Fusobacterium e Peptostreptococcus. Em relação às Gram-negativas, pode-se citar Escherichia coli (E. coli), Klebsiella, Proteus, Acinetobacter, Enterobacter, Citrobacter, Neisseria, Bacteroides e Clostridia.
O tipo de espécies bacterianas isoladas pode variar dependendo da fisiopatologia subjacente. Enquanto a diminuição da barreira do ácido gástrico devido à hipocloridria, uso de inibidores da bomba de prótons (IBPs) ou outras causas pode predispor ao SIBO com bactérias Gram-positivas, mecanismos fisiopatológicos como alterações anatômicas do intestino delgado e função de depuração intestinal subótima predispõem predominantemente a presença de bactérias Gram-negativas.
- A frequência de SIBO é baixa entre os indivíduos saudáveis e é maior em idosos.
Acredita-se que os idosos sejam mais propensos ao SIBO devido a vários fatores, como redução do ácido gástrico, diminuição da motilidade gastrointestinal, fatores anatômicos como divertículos, comorbidades como diabetes mellitus e uso de vários medicamentos.
- Em várias condições, a prevalência de SIBO é maior do que em controles saudáveis. O supercrescimento bacteriano foi associado a diversos estudos gastrointestinais, como síndrome do intestino irritável, doença celíaca e dispepsia. Além disso, também foi relacionado com doenças como esteatose hepática não alcoólica, cirrose hepática, esclerose sistêmica, diabetes mellitus, hipotireoidismo, obesidade e doença de Parkinson.
- Entre os distúrbios específicos associados ao SIBO, a prevalência relatada difere substancialmente com base na população estudada e no método/critérios de diagnóstico utilizados para diagnosticar o SIBO. Tal variabilidade é principalmente devida às limitações das tecnologias de diagnóstico atuais.
> Etiopatogênese e fisiopatologia
- A interrupção dos mecanismos endógenos de defesa do intestino é conhecida por resultar em SIBO.
Vários mecanismos de defesa do hospedeiro ajudam a prevenir o SIBO. Estes incluem o ácido gástrico, propriedades bacteriostáticas das secreções pancreatobiliares e motilidade GI mantida especialmente o peristaltismo anterógrado coordenado do intestino delgado com complexo motor migratório (MMC) intacto. Além desses, pode-se citar a válvula íleo-cecal íntegra, imunoglobulina-A salivar, imunoglobulina-A pentavalente nas secreções intestinais, defensinas das células de Paneth, camada protetora de muco intestinal, sistema imunológico intacto e efeitos protetores da flora comensal benéfica como lactobacilos. A interrupção ou deficiência de qualquer um ou de mais desses pode resultar no desenvolvimento do supercrescimento bacteriano.
- Várias doenças que alteram a motilidade GI podem levar ao SIBO. Os movimentos musculares normais do intestino auxiliam na propulsão de alimentos, micróbios e secreções, protegendo assim contra o crescimento excessivo bacteriano ou fúngico. A desaceleração da motilidade intestinal, seja por medicamentos ou condições de doença, leva à estagnação do conteúdo intraluminal, o que ajuda no desenvolvimento do SIBO.
A origem da dismotilidade intestinal pode ser neuropática ou miopática, que por sua vez pode ser primária ou secundária a uma variedade de distúrbios como esclerodermia, amiloidose, distrofia muscular, enteropatia por radiação e até mesmo síndrome paraneoplásica. A pseudo-obstrução intestinal crônica (CIPO) representa a forma mais grave de muitos desses distúrbios subjacentes. Vários outros como diabetes mellitus, hipotireoidismo, insuficiência renal crônica e condições neurodegenerativas (parkinsonismo, esclerose múltipla) podem afetar a motilidade GI e predispor ao SIBO.
- Fármacos que retardam a motilidade GI, reduzem o ácido ou quebram a integridade da mucosa podem predispor ao SIBO.
Várias classes de medicamentos podem predispor ao SIBO. Estes incluem:
- Fármacos que retardam a motilidade intestinal como opioides, anticolinérgicos, antidiarreicos e antidepressivos tricíclicos.
-Substâncias que quebram a integridade da mucosa do intestino delgado, como os anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs).
- Fármacos redutores de ácido, como os inibidores da bomba de prótons.
- Uma proporção de pacientes com distúrbios gastrointestinais funcionais (FGIDs), especialmente aqueles com Síndrome do Intestino Irritável (SII), foi relatada como tendo SIBO.
- A gordura no intestino delgado induz o freio ileal, que potencialmente promove o SIBO, desencadeando a uma piora na absorção de gordura.
Um dos mecanismos postulados de SIBO em pacientes com síndrome da má absorção (como a doença celíaca) é que a gordura não absorvida no intestino induz a desaceleração da motilidade do intestino proximal (também chamada de freio ileal) através da liberação de hormônios como peptídeo YY, neurotensina e peptídeo semelhante ao glucagon. Esse promove o SIBO, o que pode acarretar em um ciclo vicioso em que ocorre diminuição na absorção de gordura.
- Vários distúrbios sistêmicos estão associados ao SIBO. Entre esses, destacam-se as doenças hepáticas (cirrose, hipertensão portal, esteatose hepática não alcoólica e outras doenças hepáticas crônicas), pancreáticas (pancreatite aguda e crônica), neurodegenerativas (parkinsonismo, esclerose múltipla), cardiovasculares (doença arterial coronariana, trombose venosa profunda) e outros distúrbios como esclerodermia, amiloidose, infecção pelo vírus da imunodeficiência humana, hipotireoidismo e diabetes mellitus.
- Fatores de estilo de vida como consumo crônico de álcool e obesidade podem predispor ao SIBO.
A ligação entre álcool e SIBO pode ser explicada por uma variedade de mecanismos, já que esse pode modificar a defesa intestinal por meio de efeito tóxico direito no epitélio, diminuição do nível de enzimas da borda em escova e indução de fibrose.
- A disfunção intestinal no SIBO resulta do ambiente microbiano luminal alterado, dos metabólitos bacterianos, da motilidade e defesa alteradas, e da disfunção da barreira.
A fisiopatologia da disfunção intestinal no SIBO é multifatorial. Mecanismos predominantes incluem inflamação intestinal, ativação/disfunção imunológica, motilidade alterada, atividade serotoninérgica perturbada, aumento da permeabilidade intestinal, redução dos níveis de dissacaridases luminais, desconjugação de sais biliares e má absorção de nutrientes e água resultando em uma carga osmótica intraluminal aumentada.
- As alterações na biópsia do intestino delgado em pacientes com SIBO são inespecíficas. A sua histologia pode ser normal ou apresentar anormalidades sutis. Como é bastante variável, é praticamente impossível diagnosticar a doença conclusivamente com biopsias endoscópicas.
- Bactérias produtoras de metano retardam o trânsito intestinal e causam constipação. A sua produção excessiva é predominantemente contribuída por Methanobrevibacter smithii.
- O crescimento excessivo de fungos no intestino delgado (SIFO, na sigla em inglês) pode coexistir em pacientes com SIBO. Como ambos tem fatores de risco semelhantes, eles podem coexistir, no entanto, poucos estudos avaliaram essa correlação.
> Manifestações clínicas, diagnóstico diferencial e preditores
- A apresentação clínica pode variar de acordo com a gravidade do envolvimento e a doença subjacente que causa o SIBO.
Os sintomas clínicos podem variar dependendo da gravidade do envolvimento e da doença primária que causa o crescimento bacteriano excessivo. Podem ocorrer devido à má absorção de nutrientes, permeabilidade intestinal alterada e efeitos da inflamação intestinal e ativação imunológica. Dentre os sintomas mais comuns, destaca-se a dor e distensão abdominal, sensação de inchaço, gases e diarreia.
- Pacientes sintomáticos com SIBO não necessariamente têm deficiências de nutrientes, mas quando o tem, geralmente apresentam um perfil clínico mais pesado, como anemia, esteatorreia e sarcopenia.
Os sintomas relacionados às consequências nutricionais da má absorção intestinal ocorrem ao longo de um período substancial e podem resultar em desnutrição significativa, perda de peso e distúrbio no crescimento (em crianças).
- Os achados no exame físico na SIBO são inespecíficos. Eles podem ser totalmente normais em casos mais leves. A presença ou ausência de sinais físicos depende não apenas da gravidade da SIBO, mas também do tipo de doença subjacente primária.
- O espectro do diagnóstico diferencial da SIBO é bastante extenso, uma vez que seu perfil clínico varia amplamente, desde assintomático ou minimamente sintomático até características completas de má absorção e desnutrição.
- Os preditores clínicos de SIBO em pacientes com SII incluem sexo feminino, idade avançada, inchaço e flatulência intensos, tratamento prolongado com IBP, uso de narcóticos, baixa hemoglobina e subtipo diarreico de SII.
- Os testes atualmente utilizados para SIBO incluem o teste respiratório com hidrogênio à procura de glicose ou lactulose, ou cultura quantitativa do aspirado intestinal.
- Dentre os testes não invasivos, prefere-se o exame respiratório com hidrogênio à procura da glicose ao invés da lactulose.
- São necessários testes mais eficazes para detectar a SIBO, já que a cultura do aspirado do intestino é invasiva e mais de 70% dos micróbios não são cultiváveis, e os testes de hidrogênio são ou insensíveis ou não específicos.
- O papel de métodos diagnósticos mais recentes, como culturomics, metabolômica, D-xilose e testes respiratórios baseados em 13C, precisa de uma avaliação mais aprofundada.
Bactérias excessivas no intestino proximal em pacientes com SIBO produzem hidrogênio por fermentação da D-xilose, que é estimada no hálito exalado. Como essas desconjuga ácidos biliares, o teste respiratório com ácido glicocólico-13C ou -14C também tem sido utilizado para o diagnóstico da doença. Este envolve a ingestão dos ácidos glicocólicos-14C ou -13C, que são ácidos biliares, e a detecção de 14CO2 ou 13CO2 no hálito, os quais são esperados estar elevados em pacientes com SIBO. No entanto, os dados sobre a utilidade clínica de ambos os testes são escassos.
- Além dos testes definitivos para estabelecer a SIBO, são necessários outros testes auxiliares: (a) para investigar a causa subjacente e (b) para avaliar as sequelas.
É importante diagnosticar as causas da SIBO durante uma história clínica cuidadosa, exame físico e investigações apropriadas, pois alguns desses distúrbios são potencialmente tratáveis. Sendo assim, o manejo desses pode ajudar a erradicar a SIBO e prevenir a sua recorrência e, portanto, descobrir as causas e mecanismos subjacentes pode ter implicações terapêuticas.
- Os principais componentes do tratamento da SIBO incluem os seguintes: (a) tratamento das condições predisponentes, (b) antibióticos apropriados e (c) correção das deficiências nutricionais.
- Embora as bactérias no intestino delgado de pacientes com SIBO sejam sensíveis in vitro a vários antibióticos, o rifaximina pode ser preferido devido ao seu amplo espectro e à falta de efeitos adversos sistêmicos.
Figura 1: Manejo sugerido para o paciente com suspeita de SIBO. Imagem adaptada de Goshal e colaboradores (2022).
- Pacientes com Síndrome do Intestino Irritável (SII) que também têm supercrescimento bacteriano no intestino delgado (SIBO) apresentam uma resposta melhor aos antibióticos em comparação com aqueles sem SIBO.
- Pacientes com constipação crônica de trânsito lento associada a altos níveis de metano no teste respiratório de hidrogênio com lactulose (LHBT) podem responder ao tratamento com rifaximina.
- O SIBO é conhecido por recorrer após o tratamento bem-sucedido com rifaximina.
- Os preditores de recorrência do SIBO incluem idade avançada, tratamento prolongado com IBPs, cirurgia abdominal prévia e persistência da condição predisponente.
- Medicamentos que promovem a motilidade gastrointestinal e tratam as condições predisponentes podem prevenir a recorrência do SIBO.
- Pacientes com sintomas recorrentes após a resposta ao tratamento com rifaximina respondem ao retratamento com o mesmo fármaco.
- Os probióticos podem trazer algum benefício, mas são necessárias mais evidências.
Em uma meta-análise recente, que incluiu cinco estudos sobre probióticos com 266 pacientes diagnosticados com SIBO usando o teste do hidrogênio expirado, dois ensaios que compararam probióticos e placebo mostraram resultados divergentes. Ambos os estudos que combinaram probióticos e antibióticos mostraram que a associação foi superior. Mais estudos são necessários sobre esse assunto.
- O papel da dieta com baixo teor de oligossacarídeos fermentáveis, dissacarídeos, monossacarídeos e polióis (FODMAP) no tratamento da SIBO precisa de uma avaliação mais aprofundada.
Uma vez que a modificação dietética é conhecida por alterar a microbiota intestinal, mudar a dieta pode ser um método potencial para tratar a SIBO. No entanto, os dados sobre isso são escassos.