Saúde oncológica

Câncer na mira da Inteligência Artificial

Brasil ainda tem pesquisa, investimentos e capacitação profissional limitados, mas a medicina de precisão ganha espaço, principalmente, na área de oncologia.

Autor/a: Roger Chammas; Glauco Arbix

Fuente: Medpedia https://www.medpedia.com.br/cancer-na-mira-da-inteligencia-artificial/

Indice
1. Página principal
2. Referências bibliográficas

A descoberta da estrutura DNA é um marco para o mundo. Passada de geração em geração, por meio da hereditariedade, os genes desempenham um papel fundamental na formação da sociedade, impactando comportamentos e a evolução humana. Parece um exagero dizer que o DNA é responsável por tanto, contudo, o seu potencial foi fonte do maior trabalho científico internacional biológico colaborativo do mundo, o Projeto Genoma Humano, que tinha o objetivo de identificar e catalogar todas as sequências de DNA que compõem o nosso código genético.1, 2

O projeto foi concluído com sucesso em 2003 e resultou no mapeamento completo do genoma humano, composto por cerca de 3 bilhões de pares de bases de nucleotídeos. O sequenciamento trouxe uma oportunidade de olhar para a medicina e para a ciência sob uma nova ótica, revelando que variações genéticas individuais podem ser associadas à suscetibilidade a determinadas doenças assim como à resposta a tratamentos disponíveis e a outras características físicas.2

A partir dos resultados da pesquisa, a ciência pôde identificar mutações genéticas específicas, posto-chave para diagnosticar patologias como o câncer, uma doença que durante séculos foi considerada enigmática, de difícil prevenção, diagnóstico e tratamento. Mas foi a aplicação da Inteligência Artificial (IA) o marco para a transformação dos dados em soluções capazes de aprimorar a jornada de saúde dos indivíduos.2, 3

Durante as duas décadas que separam a ciência da finalização do Projeto Genoma Humano até 2023, o mundo avançou na junção de IA e informações genéticas. De acordo com o sociólogo Glauco Arbix, coordenador de impacto do Centro de Inteligência Artificial da Universidade de São Paulo (USP), a tecnologia foi um ponto estratégico para o sequenciamento de DNA, pois apenas uma ferramenta inteligente pode gerar e analisar uma quantidade massiva de dados com agilidade e menor propensão a erros.3, 6

“Encontrar padrões nesse mar de informações é uma empreitada desafiadora e que muitas vezes beira o inverossímil. A tecnologia pode processar rapidamente as informações, identificando mutações, variações genéticas e padrões que seriam difíceis de detectar manualmente”, avaliou.

A análise genômica revelou que o câncer não é uma única doença, mas um grupo de patologias complexas com base em alterações genéticas específicas. O projeto Pan-Cancer mapeou mais de 80 processos que causam mutações genéticas de distintas origens tais como relacionadas à idade, herdadas ou ainda ligadas a fatores ambientais e estilo de vida. Os dados fornecidos foram essenciais para a medicina de precisão, proporcionando que pacientes com câncer possam receber um determinado tipo de tratamento dependendo de seu perfil genético.4

Um dos exemplos é a entrada de estudos genômicos em biópsias sequenciais, que podem revelar a evolução genética de tumores ao longo do tempo, não só orientando a linha terapêutica como prevendo a resistência a terapias.5

É o caso do câncer de pulmão. Em estudo publicado na revista Journal of Experimental & Clinical Cancer Research, cientistas apontam que a biópsia líquida pode ser mais eficaz para analisar se o tratamento para o câncer pulmonar está sendo efetivo ou não. Os pesquisadores avaliaram a capacidade de o procedimento detectar o biomarcador PDL1, proteína que se tornou alvo terapêutico para o câncer de pulmão, sendo desenvolvidos medicamentos baseados em anticorpos monoclonais para bloquear sua ação.5

Cenário brasileiro

O Brasil também tem seu espaço de atuação na área de medicina de precisão por meio de centros de pesquisa, hospitais e instituições acadêmicas em todo o país. O potencial da IA já é observado, sobretudo na área da oncologia.6 No entanto, o desenvolvimento de soluções e o acesso à tecnologia aplicada na medicina personalizada ainda é incipiente.

“Muitas dessas tecnologias que vêm da análise genômica ainda estão indisponíveis, porque são importadas de outros países e com um alto custo. Ainda falta um esforço para que sejam incorporadas às políticas públicas ou para que haja aumento da nossa própria capacidade de inovação e produção. Porém, elas mostram que estamos redescobrindo a forma de tratar doenças e, eventualmente, de sermos mais eficientes”, analisou Roger Chammas, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

O Ministério da Saúde anunciou, em agosto de 2023, que investirá R$ 100 milhões em pesquisas sobre Saúde de Precisão, uma abordagem de análise genômica que combina perfil genético com o histórico de saúde e comportamental, como sinais vitais, sintomas, histórico familiar e exames. Trata-se de um investimento em prol do avanço científico com o objetivo de se aproximar de países que já investem na área há duas décadas.7

“É uma oportunidade que a análise genômica traz dentro do campo das doenças crônicas, como o câncer. É utilizar a informação como resultado de uma hipótese que fará a diferença para o paciente, além de preparar o mercado brasileiro para que a informação da análise genômica se conecte a inovações e produtos que fazem sentido para as nossas necessidades de saúde”, explica Roger Chammas.

A IA para os brasileiros

Um exemplo de como a análise genômica pode beneficiar diretamente a população é o projeto da startup Huna.ai, acelerada pelo Hospital do Amor. Algoritmos de IA são capazes de identificar sinais precoces de câncer de mama, analisando exames de sangue das pacientes.8

A premissa da startup é a de que, a partir da análise, é possível obter um diagnóstico precoce, o que diminui a agressividade dos tratamentos e a chance de complicações, e tem potencial de aumentar a qualidade de vida dos pacientes. Para o sistema, o resultado também é a redução de custos do tratamento.8

Uma outra iniciativa é o projeto Laboratório de Big Data e Análise Preditiva em Saúde (Labdaps) da Universidade de São Paulo. O grupo de pesquisadores estuda o uso de IA na predição da mortalidade de pacientes com câncer.9

O objetivo foi, desde o início do tratamento, coletar dados de toda a jornada do paciente. Por meio de machine learning, é possível acompanhar a gravidade do estado de saúde e identificar quais medidas preventivas específicas devem ser tomadas. Assim, é possível fazer a predição da mortalidade de pacientes com a doença a partir de um algoritmo que informa a equipe médica sobre o risco de o paciente evoluir para óbito entre 12 e 24 meses após a data do diagnóstico.9

Roger Chammas avaliou que esses projetos, criados no estado de São Paulo, evidenciam a centralização da pesquisa genômica no país. O acesso à pesquisa e a ferramentas com IA ainda estão concentrados em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, assim como os investimentos e a capacitação profissional.

“Enquanto nós estamos vendo algumas iniciativas no sistema público, o privado já está crescendo e criando uma robustez em uso de medicina molecular. O problema é que podemos criar uma crise de equidade. Nem toda medicina de precisão será de acesso para todos”, afirmou.

Capacitação profissional

De acordo com o professor, a análise genômica já traz em sua teoria a importância do compartilhamento de informações entre profissionais. “Precisamos treinar mais pessoas para que elas formem massa crítica. Para não apenas usarem a informação, mas para fazerem o uso correto dessa informação”.

No Brasil, os treinamentos ainda estão presentes, majoritariamente, no âmbito das graduações e especializações. Contudo, no SUS, o projeto Mapa Genoma Brasil, que tem como objetivo coletar dados genômicos e clínicos para realizar a construção de um banco de dados da população brasileira voltado a doenças de alta complexidade, como o câncer, também busca qualificar os profissionais de saúde, em especial na atenção primaria.10,11

O objetivo é incluir na formação dos profissionais a prática da medicina de precisão, para que eles tenham em sua rotina a identificação, a orientação e o encaminhamento de pacientes de alto risco para câncer e doenças cardiovasculares por meio do histórico familiar e de outros fatores de risco.10,11

A ideia é criar, a longo prazo, a capacidade profissional para coletar e armazenar informações de cada individuo para que se possa gerar dados para o sistema de saúde. Conhecer a medicina de precisão também abre as portas para a inclusão da IA e de novas ferramentas na prática clínica.10,11

O Hospital Mãe de Deus, de Porto Alegre, foi o primeiro da América Latina a utilizar a tecnologia Watson, da IBM, na área de oncologia em apoio à decisão clínica.13 A plataforma foi treinada por meio da literatura científica para auxiliar o médico no direcionamento do paciente.12

O coordenador de impacto do Centro de Inteligência Artificial da Universidade de São Paulo, Glauco Arbix, explicou a importância da capacitação para análise dos dados. Para além das ferramentas, no contexto de diagnóstico de análise de imagens, por exemplo, é possível identificar a combinação perfeita entre a IA e o ser humano.

“A IA pode visualizar o que o olho humano não vê, contudo, é o profissional que vai identificar se aquele resultado é relevante”, explicou.

Futuro

Para o professor Roger Chammas, o maior desafio para o setor ainda é o de construir um ecossistema onde todos os atores da saúde pública e privada tenham compreensão de como utilizar a tecnologia e o processamento da informação em busca de inovações acessíveis.

“Ainda não temos um cenário ideal no país. O primeiro passo é entender que nem toda informação precisa se desdobrar em uma ação. Mas, quando temos uma informação que pode se transformar em algo que beneficie a população, precisamos entender como transformá- la em algo que beneficie a população”, finalizou.