Introdução |
De acordo com os Critérios de Roma IV, a Síndrome do Intestino Irritável (SII) é definida como a presença de dor abdominal, relacionada à defecação, associada a uma mudança na frequência e/ou na forma das fezes. Além disso, a doença é considera uma desordem do eixo intestino-cérebro, por isso, é importante reconhecer a complexa interação de fatores biológicos, psicológicos e sociais que sustentam a condição.
Os pacientes são subdivididos de acordo com seu padrão de fezes predominante em SII com diarreia (SII-D), SII com constipação (SII-C), SII com hábitos intestinais mistos (SII-M) ou SII não classificado (SII-N), para direcionar a terapia.
No entanto, devido à natureza mais restritiva dos Critérios de Roma, a diretriz do Instituto Nacional de Excelência em Saúde e Cuidados do Reino Unido (NICE) para o manejo da SII na atenção primária recomendou uma definição mais ampla e pragmática da doença. Nela, reconhece-se a síndrome focando na dor ou desconforto abdominal associado à alteração da frequência ou forma das fezes por pelo menos 6 meses, na ausência de sintomas ou sinais de alarme, e reconhecendo que a coexistência de inchaço, letargia, náusea, dor nas costas ou sintomas da bexiga são comuns.
Diagnóstico e manejo da SII na atenção primária |
Os médicos de família são o primeiro ponto de contato e fornecem o diagnóstico e os cuidados para a maioria das pessoas com SII. As diretrizes de manejo incentivaram esses a fazerem um diagnóstico positivo da doença, com base nos sintomas, na ausência de sinais de alarme que justifiquem encaminhamento para excluir câncer colorretal, ou anormalidades em investigações simples. No entanto, a distensão abdominal persistente em pacientes do sexo feminino deve suscitar a consideração de CA-125 e ultrassom pélvico para excluir câncer de ovário.
Os médicos de família podem e devem buscar construir um relacionamento de longo prazo com os pacientes, aproveitando isso para desenvolver uma compreensão compartilhada de sua SII no contexto de outras condições médicas, preocupações, prioridades e impacto em suas vidas. Isso pode auxiliar na prestação de educação adequada, tomada de decisões compartilhadas e planos de manejo, e ser facilitado por um relacionamento médico-paciente de apoio contínuo e priorização da continuidade do cuidado.
A melhor compreensão por parte do paciente sobre a natureza da condição, do diagnóstico e das opções de manejo dos sintomas podem levar a uma melhor qualidade de vida, reduzir visitas ao serviço de saúde e aumentar a adesão ao tratamento.
Além disso, o médico deve explicar a fisiopatologia subjacente da SII e a história natural da condição, incluindo gatilhos comuns de sintomas. Isso deve introduzir o conceito da doença como um distúrbio de interação entre o intestino e o cérebro, juntamente com uma explicação simples desse eixo e como isso é afetado pela dieta, estresse, respostas cognitivas, comportamentais e emocionais aos sintomas, e mudanças pós-infecciosas.
A chave para o diagnóstico começa com uma história clínica e exame habilidosos, considerando o histórico médico e as circunstâncias de vida do paciente. Os critérios diagnósticos de Roma são baseados em sintomas específicos de duração e frequência definidas, que foram predominantemente derivados de pacientes de cuidados secundários e raramente são usados nos cuidados primários. Portanto, a definição de diretrizes do NICE para a SII é preferível.
Um diagnóstico positivo de SII pode ser feito com base em sintomas característicos contínuos, após avaliação de sintomas ou sinais de alarme e realização de resultados relevantes de exames de sangue, incluindo hemograma completo, proteína C reativa ou taxa de sedimentação de eritrócitos, e testes sorológicos para doença celíaca. O exame abdominal e retal digital pode ajudar a excluir outros diagnósticos e pode confirmar a consistência das fezes, incluindo impactação retal, ou identificar defecação disfuncional ou massas retais baixas. Um raio-X abdominal pode ser considerado para descartar carga fecal se a constipação for o sintoma predominante.
Os clínicos devem fazer um diagnóstico positivo de SII com base nos sintomas, na ausência de sinais de alarme e anormalidades em exames de sangue e de fezes.
O marcador não invasivo de inflamação intestinal, calprotectina fecal, permitiu a estratificação de risco para priorizar o acesso a investigações para excluir a doença inflamatória intestinal (DII) em pacientes com diarreia crônica, reduzindo investigações desnecessárias e encaminhamentos da atenção primária para a secundária. No entanto, não é específica para a doença e pode estar elevada em grupos etários mais avançados (idade ≥45 anos), obesidade, infecção, malignidade ou por medicamentos, como inibidores da bomba de prótons (IBPs) ou anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs).
Sangue oculto nas fezes ou teste imunoquímico fecal não são usados rotineiramente para avaliar pacientes com possível SII na atenção primária. As diretrizes locais e nacionais para rastreamento de câncer colorretal e ovariano devem ser seguidas, quando indicadas. Uma vez feito o diagnóstico de SII, o médico deve se esforçar para acompanhar o paciente nos próximos 2 meses para garantir que os sintomas não estejam piorando progressivamente, o que pode ser indicativo de um processo de doença subjacente.
O encaminhamento para gastroenterologia na atenção secundária é justificado quando houver dúvida diagnóstica, em pacientes com sintomas graves ou refratários aos tratamentos de primeira linha.
Diagnóstico e manejo da SII na atenção secundária |
É igualmente importante que os médicos da atenção secundária construam uma boa relação e confiança com o paciente, adotando os princípios da escuta empática para otimizar a interação. Ademais, é útil investigar possíveis gatilhos de sintomas, incluindo infecção entérica aguda anterior, presente em aproximadamente 10% das pessoas com SII, antibióticos ou estresse psicológico. Isso demonstra ao paciente que o clínico está interessado em compreender seu distúrbio, e ajuda na compreensão do paciente sobre a possível etiologia subjacente e valida o diagnóstico. É importante iniciar a consulta perguntando quando os sintomas do paciente começaram. Uma história detalhada deve confirmar a presença dos sintomas cardinais da SII. Estes incluem dor abdominal e alteração no hábito intestinal (frequência e/ou consistência anormal das fezes), e, em particular, a relação entre os dois.
A saciedade precoce, plenitude pós-prandial, dor epigástrica, náuseas ou azia são comuns, já que a dispepsia funcional e o refluxo gastroesofágico frequentemente se sobrepõem à SII. Sintomas extra intestinais, como dor nas costas, sintomas vesicais e ginecológicos e insônia são frequentes, assim como a presença de outros distúrbios somáticos funcionais, como fibromialgia, cefaleia tensional ou fadiga crônica. Transtornos mentais comuns e comportamento tipo somatoforme frequentemente coexistem. A evidência objetiva de perda de peso também é importante. Outros itens relevantes na história clínica incluem intervenções cirúrgicas anteriores e histórico familiar de câncer gastrointestinal, DII, doença celíaca ou SII. Por fim, atenção deve ser dada para excluir sintomas gastrointestinais relacionados a mudanças na dieta, medicamentos que podem alterar a motilidade intestinal, como agentes psicotrópicos ou opioides, ou excesso de álcool.
Pacientes com sintomas ou sinais de alarme devem ser encaminhados urgente para colonoscopia ou avaliação radiológica do cólon. Aqueles com características atípicas, como diarreia noturna ou dor abdominal, ou características de defecação obstrutiva, pode ser necessária uma investigação limitada adicional para excluir imitadores importantes. Estes incluem colite microscópica ou diarreia biliar primária ou idiopática (DBI) em aqueles com suspeita de SII-D, e defecação disfuncional e outros distúrbios defecatórios em aqueles com suspeita de SII-C.
Não se deve utilizar a colonoscopia para avaliar a SII, no entanto, o método deve ser considerado em pacientes com diarreia. Fatores que devem alertar o médico para a possibilidade de colite microscópica incluem sexo feminino, idade ≥50 anos, doença autoimune coexistente, diarreia noturna ou grave, aquosa, duração da diarreia <12 meses, perda de peso ou uso de drogas precipitantes potenciais, incluindo AINEs, IBPs, inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRSs) ou estatinas.
Sintomas sugestivos de um distúrbio defecatório incluem esforço para defecar, sensação de evacuação incompleta ou bloqueada e uso de manobras digitais para facilitar a defecação. Na presença desses ou de incontinência fecal, testes fisiológicos podem ser considerados, quando disponíveis, para facilitar a seleção de pacientes mais propensos a se beneficiar da terapia direcionada de biofeedback do assoalho pélvico para melhorar a função anorretal. Deve-se ter cautela ao considerar a correção cirúrgica de alterações anatômicas anorretais em pacientes com sintomas típicos de SII-C, pois não há estudos prospectivos que demonstraram que o método melhorou os sintomas.
Por fim, o teste de insuficiência pancreática exócrina eexame de hidrogênio expirado não devem ser utilizados para excluir supercrescimento bacteriano no intestino delgado ou intolerância a carboidratos, em pacientes com sintomas típicos de SII.
Tratamento da SII |
O tratamento da SII geralmente é direcionado para o(s) sintoma(s) experimentado(s) pelo paciente. Todos devem ser aconselhados sobre os potenciais benefícios do exercício regular. Ademais, o tratamento deve começar com terapias dietéticas ou medicamentos de primeira linha, de acordo com a escolha do paciente, com os de segunda linha reservados para aqueles cujos sintomas não melhoram com essas medidas. Idealmente, a eficácia dos tratamentos selecionados deve ser revisada em 3 meses e interrompida se não houver resposta, com escalonamento para a próxima terapia disponível.
Atualmente, as terapias psicológicas são reservadas para pacientes cujos sintomas são refratários a medicamentos.
Deve haver uma discussão realista sobre as limitações de todos os tratamentos disponíveis para a SII para gerenciar as expectativas do paciente. É importante enfatizar que a cura é improvável, mas uma melhora substancial nos sintomas, funcionamento social e qualidade de vida é alcançável. A decisão final sobre as escolhas de tratamento deve ser tomada pelo paciente, com conselhos e apoio do médico.
Tratamentos de primeira linha |
- Todos os pacientes com SII devem ser aconselhados a fazer exercícios regularmente.
- Dietas de eliminação de alimentos baseadas em anticorpos IgG não são recomendadas em pacientes com SII.
- Fibras solúveis, como plantago ovata (psyllium), são um tratamento eficaz para sintomas globais e dor abdominal na SII, mas as insolúveis (por exemplo, farelo de trigo) devem ser evitadas, pois podem exacerbar os sintomas. As fibras solúveis devem ser iniciadas em baixa dose (3–4 g/dia) e aumentadas gradualmente para evitar distensão.
- Uma dieta com baixo teor de oligossacarídeos fermentáveis, dissacarídeos, monossacarídeos e polióis, como uma terapia dietética de segunda linha, é um tratamento eficaz para sintomas globais e dor abdominal na SII, mas sua implementação deve ser supervisionada e devem ser reintroduzidos de acordo com a tolerância.
- Uma dieta isenta de glúten não é recomendada na SII.
- Probióticos podem ser um tratamento eficaz para sintomas globais e dor abdominal na SII, mas a diretriz não recomendou uma espécie ou cepa específica. É razoável aconselhar os pacientes que desejam experimentar probióticos a tomá-los por até 12 semanas e interrompê-los se não houver melhora nos sintomas.
- A loperamida pode ser um tratamento eficaz para diarreia na SII. No entanto, dor abdominal, inchaço, náusea e constipação são comuns e podem limitar a tolerabilidade.
- Certos antiespasmódicos podem ser um tratamento eficaz para sintomas globais e dor abdominal na SII.
- O óleo de hortelã-pimenta (mentha piperita) pode ser um tratamento eficaz para sintomas globais e dor abdominal na SII.
- O polietilenoglicol (PEG) pode ser um tratamento eficaz para constipação na SII.
Tratamentos de segunda linha |
- Antidepressivos tricíclicos são eficazes para o tratamento de segunda linha para sintomas globais e dor abdominal na SII. Eles podem ser iniciados na atenção primária ou secundária, mas é necessária uma explicação cuidadosa sobre a justificativa para o seu uso, e os pacientes devem ser aconselhados sobre seu perfil de efeitos colaterais. Eles devem ser iniciados em uma dose baixa (por exemplo, 10 mg de amitriptilina uma vez ao dia) e titulados lentamente para uma dose máxima de 30–50 mg uma vez ao dia.
- Inibidores seletivos da recaptação de serotonina podem ser eficazes para sintomas globais na SII. Assim como os antidepressivos tricíclicos, podem ser iniciados na atenção primária ou secundária, mas é necessária uma explicação cuidadosa sobre a justificativa para o seu uso, e os pacientes devem ser aconselhados sobre seu perfil de efeitos colaterais.
- Eluxadolina é eficaz para a SII com diarreia na atenção secundária. É contraindicada em pacientes com problemas prévios de esfíncter de Oddi ou colecistectomia, dependência de álcool, pancreatite ou grave comprometimento hepático.
- Os antagonistas do receptor 5-hidroxitriptamina 3 são eficazes para a SII com diarreia na atenção secundária. A constipação é o efeito colateral mais comum, por isso é recomendado para SII com diarreia.
- O antibiótico não absorvível rifaximina é eficaz para a SII com diarreia na atenção secundária, embora seu efeito na dor abdominal seja limitado.
- A linaclotida é uma droga eficaz para a SII com constipação na atenção secundária. Provavelmente é o secretagogo disponível com melhor eficácia, embora a diarreia seja um efeito colateral comum.
- Lubiprostone é eficaz para a SII com constipação na atenção secundária. Esse secretagogo é menos propenso a causar diarreia do que outros.
- Plecanatide e Tenapanor são eficazes para a SII com constipação na atenção secundária. A diarreia é um efeito colateral comum.
Terapias psicológicas |
- A terapia cognitivo-comportamental específica para a SII pode ser um tratamento eficaz para sintomas globais na SII.
- A hipnoterapia dirigida ao intestino pode ser um tratamento eficaz para sintomas globais na SII.
- As terapias psicológicas devem ser consideradas quando os sintomas não melhorarem após 12 meses de tratamento medicamentoso.
Manejo da SII grave ou refratória |
- Sintomas graves ou refratários de SII devem motivar uma revisão do diagnóstico, com consideração de investigações adicionais. Deve ser gerenciada com uma abordagem multidisciplinar integrada.
- Os danos iatrogênicos devido à prescrição de opioides, cirurgias desnecessárias e abordagens diagnósticas ou terapêuticas não regulamentadas e não comprovadas incentivadas por ganho financeiro ou de reputação devem ser evitados.
- O uso de neuromoduladores intestinais-cerebrais combinados pode ser considerado para sintomas mais graves, com vigilância para os riscos de síndrome serotoninérgica.
Conclusão |
A SII é um distúrbio multifatorial da interação entre o intestino e o cérebro, e as evidências resumidas da diretriz destacaram a importância da comunicação eficaz, do estabelecimento de um diagnóstico positivo e da instituição de terapias não farmacológicas e farmacológicas apropriadas de acordo com os sintomas predominantes.