Eixo cérebro-intestino

O eixo microbiota-intestino-cérebro na síndrome do intestino irritável

Investigação com o objetivo de compreender a influência da microbiota intestinal nas interações bidirecionais entre o intestino e o cérebro

Introdução

A síndrome do intestino irritável (SII) é um distúrbio biopsicossocial crônico que se manifesta por dor abdominal recorrente e alterações na forma ou frequência das fezes. A condição afeta 4% a 10% da população global e está associada a uma qualidade de vida marcadamente reduzida. Além da predisposição genética, eventos adversos na vida, fatores psicossociais, estresse crônico e agudo e infecções gastrointestinais (GI), evidências crescentes sugeriram que a microbiota intestinal desempenha um papel fundamental na doença.

No intestino, uma microbiota que funciona bem é altamente adaptada ao hospedeiro e realiza processos bioquímicos e metabólicos que são importantes para o seu funcionamento. Os sinais provenientes da microbiota intestinal modulam aspectos da homeostase através de vias de comunicação neural, endócrina e imunológica entre o intestino e o cérebro. Juntos, isso estabeleceu o conceito do eixo microbiota-intestino-cérebro (EMIC).

O nervo vago é um importante modulador do EMIC. Em circunstâncias normais, é ativado por micróbios e metabólitos intestinais que respondem à dieta, como ácidos graxos de cadeia curta (AGCC), ou fatores endócrinos, enzimas e neurotransmissores. Cada um desses é potencialmente afetado por alterações na composição da microbiota e está envolvido na patologia da SII. No intestino, as terminações vagais fazem sinapse com os neurônios do sistema nervoso entérico (SNE), que governa a função dos sistemas muscular, neuro-hormonal e secretor do trato gastrointestinal para gerar padrões de digestão funcional. Na SII, alguns fatores também podem desencadear flutuações na atividade do SNE. No cérebro da SII crônica, os sinais eferentes podem ser percebidos como desagradáveis ou dolorosos, levando potencialmente a desconforto ou dor visceral crônica.

A heterogeneidade da “microbiota intestinal saudável” tornou difícil identificar uma assinatura microbiana clara da SII. Na doença, a sua composição está frequentemente associada a uma diminuição da diversidade microbiana e à disbiose. No entanto, diversos fatores influenciam essa estrutura, como localização geográfica, etnia, escolhas alimentares e uso de medicamentos.  Na última década, muito conhecimento foi adquirido a partir de intervenções clínicas que alteram a microbiota, como a dieta baixa em FODMAP e o transplante de microbiota fecal (FMT), que emergiram como estratégias de tratamento discutivelmente bem-sucedidas. No entanto, os seus efeitos no eixo EMIC ainda estão longe de ser compreendidos.

Tratamento clínico da alteração da microbiota na SII
  • Intervenção dietética

A dieta é um fator ambiental fundamental na composição da microbiota. Na SII, os alimentos desempenham um papel importante entre os fatores que contribuem para a indução dos sintomas. Na verdade, a maioria dos pacientes com a doença apresenta aumento da carga de sintomas após a ingestão de alimentos. Propõe-se que vários mecanismos subjacentes que geram sintomas estejam envolvidos: (1) Os efeitos locais no intestino delgado e grosso são causados por oligossacarídeos, dissacarídeos, monossacarídeos e polióis fermentáveis (FODMAPs). A ingestão desses carboidratos de cadeia curta tem um efeito osmótico no lúmen intestinal, aumentando o conteúdo de água no intestino delgado e introduzindo partículas de alimentos não digeridas nas bactérias intestinais que as fermentam prontamente, causando produção de gases no cólon, levando à dor abdominal. Varjú et al., (2017) compararam a terapia dietética padrão para SII e a dieta pobre em FODMAP. Ambas demonstraram aliviar os sintomas, mas a dieta pobre em FODMAP mostrou um melhor efeito terapêutico. (2) As alterações da microbiota intestinal e a fermentação bacteriana podem ter um papel nos sintomas relacionados com a alimentação. Inexplicavelmente, são frequentemente relatados resultados contraditórios relativamente às diferentes composições da microbiota entre pacientes com SII e controlos saudáveis. E, por fim (3) as respostas imunológicas e inflamatórias sistêmicas também podem contribuir na geração de sintomas na SII.

  • Transplante fecal

No FMT, as fezes examinadas de um doador saudável são transferidas para um receptor com o objetivo de alterar a diversidade da microbiota intestinal. É recomendado como estratégia terapêutica na infecção por Clostridioides difficile (CDI) e demonstrou ser eficaz tanto na doença inflamatória intestinal como na SII. Existem diversos meios de administração de FMT disponíveis, incluindo colonoscopia, sonda nasogástrica, sonda nasoduodenal, enema e cápsulas orais. Cada uma dessas modalidades tem sido associada a um sucesso clínico variável.

Há muitas esperanças para o futuro no tratamento da SII, e as cápsulas de FMT são uma delas. São benéficas porque a via de administração é muito menos invasiva, exigindo menos realização de endoscopias e o paciente podem fazer a administração por via oral de casa. No entanto, a maioria dos pesquisadores e médicos acreditam firmemente que são necessárias mais pesquisas antes que o FMT possa se tornar uma opção de tratamento abertamente disponível.

Barreira e integridade intestinal

A biologia molecular revelou a presença de alterações estruturais e funcionais da barreira epitelial intestinal e leve ativação do sistema imunológico tanto localmente na mucosa quanto sistemicamente. Sabe-se alterações na permeabilidade intestinal criam uma passagem para a microbiota e seus metabólitos do lúmen para o SNE, características que estão associadas à inflamação de baixo grau na SII.

A associação entre função de barreira prejudicada e sintomas na SII não é totalmente compreendida, mas a hipersensibilidade visceral e a dor são possivelmente explicadas pela exposição do aparelho neuronal e imunológico submucoso. Em condições normais, a barreira intestinal consiste em uma monocamada de células epiteliais polarizadas, revestidas por uma camada de muco. Como parte do sistema de defesa do hospedeiro, essa camada retém patógenos e é habitada por microrganismos como Bacteroides, Firmicutes e Lactobacillus, cujos produtos, como IgA, contribuem para a prevenção da colonização dos microrganismos externos. A microbiota também produz proteases e inibidores de proteases que podem modular a resposta imune do hospedeiro. Na SII, acredita-se que as proteases derivadas da disbiose contribuam para a perda da função de barreira, ativação imunológica e geração de sintomas através da ativação de receptores ativados por protease (PARs). Recentemente, foram identificados níveis mais elevados de atividade proteolítica fecal na SII. Notavelmente, isto foi associado a alterações na composição da microbiota, sugerindo que microrganismos específicos contribuem para o aumento da produção ou supressão inadequada de proteases e subsequente ativação de PARs que podem levar à disfunção da barreira intestinal.

Na permeabilidade normal da barreira, o espaço entre as células epiteliais é selado por junções estreitas e mantido por uma rede complexa de interações proteicas. Na SII, descobriu-se que os níveis de expressão de proteínas dessa junção estão reduzidos no duodeno, jejuno e cólon. Curiosamente, descobriu-se que a microbiota regula a expressão dessas proteínas, e foi observada uma passagem bacteriana melhorada através da barreira.

Na mucosa intestinal, os mastócitos compreendem 2% a 3% do conjunto de células imunes da lâmina própria, e o seu aumento da concentração ou ativação é um dos achados patológicos mais consistentes na SII. Possuem um grande número de moléculas estimuladoras que permitem a interação com uma infinidade de parceiros, incluindo células imunes e não imunes. Liberam mediadores como histamina, serotonina, proteases e prostaglandinas, além de secretarem citocinas e quimiocinas. Alguns interagem com a microbiota comensal e com o sistema nervoso, sinalizando para os neurônios entéricos através da serotonina, enquanto são influenciados por neurotransmissores como a substância P ou a noradrenalina. Na SII, a ativação de neurônios entéricos induzida por mastócitos pode contribuir para a hipersensibilidade visceral.

Um marcador potencial de inflamação de baixo grau na SII são os níveis alterados de citocinas. Vários perfis dessas proteínas foram relatados, mas são altamente inconsistentes. Alguns estudos encontraram níveis aumentados de citocinas pró-inflamatórias circulantes, como IL-6, IL-8, IL-17 e TNF-α, ou níveis reduzidos da citocina anti-inflamatória IL-10.

O aumento da expressão de receptores Toll-like (TLRs) é um achado interessante em pacientes com SII. Esses são encontrados em muitas células diferentes, incluindo células epiteliais intestinais e células imunológicas, e interagem em estreita relação com receptores neurais e imunológicos que estão envolvidos na regulação homeostática na mucosa intestinal. Os TLRs reconhecem componentes microbianos específicos de bactérias comensais e patogênicas e desempenham um papel na tolerância imunológica aos comensais e na defesa contra patógenos.

Neuroimagem e microbiota na SII

Na neuroimagem do cérebro da SII, um dos achados mais consistentes são alterações na estrutura e função de regiões-chave da rede somatossensorial, incluindo o globo pálido, putâmen e caudado, compondo os gânglios da base. Também foi relatado aumento da densidade da substância cinzenta no hipotálamo e sua diminuição no córtex pré-frontal. Em experimentos de distensão retal, pacientes com SII tiveram uma resposta cerebral diferencial na matriz da dor e na rede de modo padrão.

 Estudos de neuroimagem também revelaram diferenças de gênero nas alterações da rede cerebral da SII. Pacientes do sexo feminino apresentaram aumento da espessura cortical no giro pré e pós-central e diminuição da espessura na ínsula bilateral e no córtex cingulado anterior subgenual esquerdo.

Ao combinar dados de imagens cerebrais, dados moleculares e genéticos e dados metagenômicos para análise conjunta, surgem novos desafios e oportunidades na tentativa de elucidar os mecanismos e biomarcadores da SII.

O enorme potencial dos grandes volumes de dados, quando aproveitado de forma eficiente, traduz-se frequentemente em conhecimentos mais profundos em sistemas dinâmicos multifatoriais, que de outra forma seriam complicados de explorar, descrever e compreender. O EMIC é um exemplo adequado de um sistema multivariado complexo e a ciência de dados é o método escolhido para abordar esse problema. Tornou-se altamente evidente que nenhum fator único está subjacente ao distúrbio heterogêneo da SII. Sua investigação requer a análise de grandes dados coletados de uma série de disciplinas clínicas para uma compreensão mais profunda dos mecanismos e vias fisiopatológicas e correlações com sintomas específicos e gravidade dos sintomas.

O grande número de fatores envolvidos, tanto do cérebro quanto da microbiota, juntamente com sua variabilidade contínua, produz grande quantidade de informações. Esses são investigados usando várias modalidades clínicas em vários pontos no tempo em pesquisas longitudinais.

Conclusão

Nos últimos anos, a investigação que visa compreender a influência da microbiota intestinal nas interações bidirecionais entre o intestino e o cérebro ganhou impulso. O papel da microbiota na SII é tão multifacetado que requer abordagens de investigação entre disciplinas e campos científicos, para revelar detalhes das interações complexas. Atualmente, a maioria das intervenções dietéticas ou de TMF estão limitadas a observações de mudanças microbianas transitórias em curtos períodos. Sabe-se que os perfis da microbiota intestinal estão significativamente associados a alterações na integridade intestinal, na microestrutura cerebral, nas atividades neurais intrínsecas e na função cognitiva e no humor. Como essa relação simbiótica tremendamente intrincada funciona na SII ainda precisa ser desvendada.