Ao longo dos anos a doença do refluxo gastroesofágico (DRGE) foi equiparada à esofagite erosiva (EE), contudo, nas últimas duas décadas, observou-se que 70-80% dos pacientes com pirose não apresentavam lesões na mucosa esofágica detectáveis por endoscopia, e para estes casos, foi criado o termo doença de refluxo não erosiva (DRNE). Além disso, esses pacientes também apresentavam refluxo aumentado à pHmetria esofágica, ou tinham refluxo fisiológico, porém com correlação positiva de sintomas (esôfago hipersensível) ou resposta ao IBP no teste terapêutico (controle dos sintomas supostamente devido ao refluxo em pacientes não submetidos à exames).
Recentemente, os critérios de ROMA IV propuseram que a doença do refluxo gastroesofágico (DRGE) deve ser diagnosticada apenas em pacientes com exposição anormal ao ácido esofágico, e que a hipersensibilidade ao refluxo (HR) e a pirose funcional (PF) devem ser consideradas condições funcionais separadas da DRGE. A primeira entidade (HR) pressupõe uma alteração da sensibilidade do esôfago, sendo visto nesse grupo uma maior ocorrência de dilatação dos espaços intercelulares facilitando a estimulação dos receptores TRPV1 das terminações nervosas e alteração da percepção central de dor. Enquanto a segunda (PF) é vista em pacientes sem alteração na endoscopia, com pHmetria com exposição ácida normal com correlação negativa de sintomas.
Embora diversas evidências recentes apoiem que a PF possa ser completamente diferenciada da DRGE, o conceito de que a HR não é DRGE é altamente questionável. Por isso, Savarino e colaboradores (2022) realizaram uma revisão para tentar fornecer dados atuais sobre essas questões.
Diferença entre pirose funcional e doença de refluxo não erosiva |
Embora os pacientes compartilhem o mesmo sintoma de pirose sem diferenças em termos e frequência, vários estudos fisiopatológicos e clínicos mostraram que a PF e DRNE não são a mesma entidade.
Pacientes com DRNE apresentam uma maior prevalência de hernia de hiato, tônus basal mais baixo no esfíncter esofágico inferior (EEI), maior carga ácida e mais anormalidades na integridade da mucosa e no clearance químico do que pacientes com PF. Por outro lado, a sobreposição com dispepsia e intestino irritável é mais frequente em pacientes com PF. Além disso, estudos com distensão do balão esofágico e perfusão ácida documentaram limiares de percepção da dor mais baixos nesse grupo. Por fim, eles não respondem aos inibidores da bomba de próton (IBP) e necessitam de controle de distúrbios psiquiátricos e neuromodulação.
Diferença entre hipersensibilidade ao refluxo e doença de refluxo não erosiva |
A distinção da HR de DRNE não é tão evidente quanto da PF. De maneira diferente da PF, achados na microscopia eletrônica aproximam a HR à DRNE (dilatação de espaços intercelulares: PF 13%, RH 65% e DRNE 77%). Além disso, estudos realizados com monitoramento moderno de impedância-pH mostraram diferenças importantes entre PF e RH. Por exemplo, Savarino e colaboradores (2013) confirmaram um maior tempo de exposição ácida (TEA) em HR do que em PF e, também, relataram um número significativamente maior de episódios de refluxo fracamente ácido e uma taxa mais alta de refluxo proximal do que em HF e controles saudáveis. Foi hipotetizado que o aumento do número de episódios de refluxo levemente ácido poderia induzir danos microscópicos à mucosa esofágica, resultando na sensibilização do esôfago e percepção ampliada de eventos de refluxo, como comprovado pela alta taxa de sintomas associados a eventos de refluxo fracamente ácido em pacientes com HR.
A diferença entre HR e PF foi ainda mais evidente ao utilizar as métricas de índice de onda peristáltica induzida por deglutição pós-refluxo (PSPW) e impedância basal média noturna (MNBI). Um MNBI baixo é uma expressão de integridade mucosa esofágica comprometida, enquanto um índice PSPW baixo reflete a peristalse esofágica comprometida e o clearance químico frequentemente é associado à DRGE. Alguns estudos descobriram que o MNBI e o índice PSPW são significativamente mais baixos em pacientes com HR do que em pacientes com PF, confirmando assim a presença de integridade mucosa reduzida e clearance de refluxo inadequado na população anterior.
Tabela 1: As principais diferenças fisiopatológicas e clínicas em pacientes com HR e PF.
Por fim, o uso combinado de MNBI e PSPW aumenta a separação entre PF e HR, fornecendo uma excelente área sob a curva (> 0,90) na análise de característica operacional do receptor e, assim, confirmando que FH e RH são populações diferentes.
É importante ressaltar que os pacientes com HR não são uma população homogênea. Um subgrupo desses parecem ter sintomas de refluxo gerados por distúrbios comportamentais, como arrotos supra-gástricos ou ruminação, e deve ser tratado com abordagens terapêuticas não relacionadas à DRGE, como respiração diafragmática ou terapia cognitivo-comportamental. Esses subgrupos comportamentais não relacionados à DRGE podem explicar por que muitos pacientes com HR não respondem apenas aos IBPs.
Estudos constataram que pacientes com HR tinham níveis semelhantes de ansiedade, depressão e qualidade de vida em comparação com pacientes com DRGE, enquanto pacientes com PF apresentavam maior ansiedade do que todos os outros subgrupos. Por isso, é necessário que os gastroenterologistas identifiquem os sintomas psiquiátricos pois abordá-los pode facilitar o controle dos sintomas.
As tentativas de controlar tanto o refluxo ácido quanto o refluxo levemente ácido com terapia cirúrgica têm proporcionado bons resultados tanto a curto prazo quanto a longo prazo na população com HR. Spechler e colaboradores (2019), recentemente confirmaram o benefício da cirurgia em um ensaio prospectivo, randomizado e controlado, no qual a monitorização pré-operatória de impedância-pH foi utilizada para detectar os diferentes fenótipos de DRGE.
A fundoplicatura laparoscópica, após 1 ano, resultou em um controle significativamente melhor dos sintomas de refluxo (67%) em comparação com o tratamento médico ativo (28%) e o tratamento médico controle (12%) em pacientes nos quais a monitorização de impedância-pH confirmou uma associação positiva entre sintomas e refluxo. Por fim, o recente consenso de Seul em 2020 sobre o diagnóstico e manejo da DRGE concluiu que o RH deve ser considerado uma forma de DRGE.
> Conclusão
O termo "DRNE" inclui diversas síndromes diferentes, cada uma com características fisiopatológicas específicas que requerem abordagens de manejo personalizadas. A definição tradicional de doença de refluxo sem alterações endoscópicas, que é aplicada uniformemente a todas, deve ser abandonada em favor de termos diagnósticos mais específicos, a fim de evitar confusão e decisões terapêuticas equivocadas. No futuro, estudos que utilizem técnicas mais avançadas serão úteis para identificar de forma mais precisa os diferentes e complexos subgrupos de pacientes que apresentam pirose sem erosões na mucosa.