A terapia de reposição enzimática é utilizada para doenças genéticas em que há produção insuficiente ou nula de uma enzima. Esta enzima normalmente está nos lisossomos, organela da célula que é responsável pela digestão intracelular, promovendo a degradação de partículas extracelulares e moléculas ingeridas pelas células. Os distúrbios lisossômicos compreendem um grupo de mais de 50 doenças progressivas hereditárias diferentes.
A terapia de reposição enzimática, como o próprio nome diz, realiza a reposição da enzima que o organismo normalmente não produz. A enzima é produzida em laboratório, a partir de células geneticamente modificadas.
A primeira terapia de reposição enzimática foi para a doença de Gaucher. A descoberta de genes que codificam diferentes enzimas lisossômicas permitiu a produção em larga escala de proteínas humanas recombinantes. A maioria dessas proteínas carregam um açúcar residual, chamado manose-6-fosfato (M6P), que se liga ao receptor M6P na superfície das células.
O receptor M6P é extremamente importante para terapia de reposição enzimática em pessoas com distúrbios de armazenamento lisossômico. Em uma pessoa saudável, cada célula produz suas próprias enzimas lisossômicas e, em muitas dessas enzimas, as moléculas de M6P ficam expostas. O receptor M6P, depois de se ligar ao M6P (ligado à enzima), puxa a enzima para uma rede vesicular (rede trans Golgi) que eventualmente o entrega ao lisossomo.
Alternativamente, o receptor M6P desvia para membrana celular externa (plasma), onde pode capturar uma enzima exógena equipada com grupos M6P para o citoplasma iniciando um processo chamado endocitose. Existe, portanto, um caminho através do qual a enzima exógena, entregue terapeuticamente, pode atingir o lisossomo e compensar a deficiência enzimática no distúrbio de armazenamento lisossômico.
> Doença de Pompe
A Doença de Pompe ou glicogenose tipo II é um distúrbio neuromuscular hereditário que causa fraqueza muscular progressiva. Caracteriza-se pela deficiência da enzima que faz a quebra do glicogênio. A falta ou redução desta enzima faz o glicogênio se acumular dentro das células, causando a destruição do tecido muscular.
A terapia de substituição enzimática melhorou, consideravelmente, as perspectivas dos pacientes. Os bebês que foram tratados com esta terapêutica estão chegando aos seus 20 anos, no entanto, a sua resposta é variável, pois com a sobrevivência prolongada, novos fenótipos surgiram. Fraqueza muscular distal inexplicável, problemas de mobilidade e problemas respiratórios se desenvolveram em muitos pacientes ao longo da vida.
> Quais os desafios para a Terapia de Reposição Enzimática?
A acessibilidade da enzima terapêutica exógena aos tecidos varia. Por exemplo, é mais fácil atingir o fígado e o baço em pessoas com doença de Gaucher (deficiência na produção da enzima glicocerebrosidase responsável pela digestão de um tipo de gordura que é facilmente encontrado nos alimentos) do que atingir os músculos em pessoas com doença de Pompe. O sistema nervoso central, que é afetado em muitas formas graves de distúrbios lisossômicos, é inacessível por causa da barreira hematoencefálica.
Outra limitação é a meia-vida das enzimas lisossomais — entre 2 e 9 dias — que necessita de infusões todas as semanas ou a cada 2 semanas ao longo da vida. Além disso, a infusão de enzima exógena pode provocar a formação de anticorpos contra a enzima, o que necessita a descontinuação da terapia ou o início de terapias medicamentosas para suprimir a resposta imune.
Até certo ponto, a probabilidade de uma resposta do sistema imunológico pode ser prevista. Quanto mais “prejudicial” a mutação, maior a probabilidade de uma resposta imune à enzima de substituição. Se um paciente tiver duas mutações que eliminam a síntese de proteína, a probabilidade que o paciente montará uma resposta imune para a enzima de substituição é alta.
> O tratamento in utero terá efeito?
Se o estudo de Cohen et al. (2022) for um prenúncio, então sim. A paciente, que tinha 13 meses de idade na época, não tinha características específicas da doença de Pompe ao nascer e permaneceram livres delas ao longo dos meses. Além disso, biomarcadores da doença de Pompe, como como níveis elevados de creatina quinase e glicose tetrassacarídeo, estavam ausentes. No entanto, os autores detectaram baixos níveis de anticorpos com 30 semanas de gestação, o que motivou o início do rituximabe no segundo dia de vida, e tratamento com rituximabe continuou durante a última avaliação.
O acompanhamento adicional dessa paciente será importante. Cohen e colaboradores estão conduzindo um teste de fase 1 da terapia de reposição enzimática in utero em 10 fetos com um distúrbio de armazenamento lisossômico diagnosticado geneticamente.