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Manifestações cutâneas associadas a doenças sistêmicas

A pele se comunica com o organismo, muitas vezes deixando transparecer os primeiros sinais e/ou sintomas de uma doença interna, podendo, inclusive, ser essas as únicas expressões de doenças sistêmicas.

Autor/a: Sampaio et al.,

Fuente: Anais Brasileiros de Dermatologia, v. 96, n. 6, p. 655-671, 2021 Manifestações cutâneas associadas a doenças sistêmicas Parte I

A pele se comunica com o organismo, muitas vezes deixando transparecer os primeiros sinais e/ou sintomas de uma doença interna, podendo, inclusive, ser essas as únicas expressões de doenças sistêmicas. Nesse sentido, é importante que o dermatologista conheça tais condições e encaminhe a um especialista.

Lúpus eritematoso sistêmico

O lúpus eritematoso (LE) é doença inflamatória do tecido conjuntivo com diversidade de apresentações clínicas, caracterizada pela produção de autoanticorpos contra constituintes celulares. As suas manifestações cutâneas compõem um espectro que varia de lesões de caráter benigno e autolimitado a erupções graves, podendo, por vezes, ser fatais quando associadas ao lúpus eritematoso sistêmico (LES).

Atualmente, são divididas em específicas e inespecíficas.  As segundas são as que não apresentam o quadro histopatológico característico do LE, mas dão “dicas” quanto ao diagnóstico e ao prognóstico. Em contraste, as primeiras englobam os subtipos de lúpus eritematoso cutâneo (LEC), que são o lúpus eritematoso cutâneo crônico (LECC), subagudo (LECSA) e agudo (LECA) (tabela 1).

Tabela 1: Lesões específicas e não específicas dos lúpus eritematoso. Tabela retirada de Sampaio e colaboradores (2021).

Dermatomiosite

É uma doença inflamatória idiopática, clinicamente heterogênea, que pode ser de difícil diagnóstico.

O curso clínico das lesões cutâneas não é necessariamente paralelo ao da doença muscular, e pode preceder ou seguir a miosite. Em mais da metade dos pacientes, precedem o envolvimento muscular em meses ou anos. A manifestação cutânea pode ser dividida em sete tipos: patognomônico, característico, compatível, menos comum, raro, descrito recentemente e manifestações cutâneas não específicas.

O quadro clínico é marcado por intensa fotossensibilidade, com lesões eritemato‐violáceas no couro cabeludo, pescoço, ombros, superfícies extensoras das extremidades superiores, parte superior do tórax e parte superior das costas.

O prurido pode ser intenso e persistente. Muitas vezes, é resistente ao tratamento com anti‐histamínicos e corticosteroides tópicos.

As lesões no couro cabeludo são caracterizadas por placas atróficas, eritematosas e escamosas. O prurido nessa região é marcante. Pode ocorrer alopecia leve a moderada, não cicatricial.

A vasculite pode se manifestar como púrpura palpável, lesões semelhantes à urticária, livedo reticular, infarto periungueal, ulceração digital ou oral; menos comumente, como lesões vesico‐bolhosas, erosivas, necróticas e ulcerativas. Ocorrem principalmente na dermatomiosite juvenil, e geralmente como vasculite leucocitoclástica. A presença de lesões cutâneas vesico‐bolhosas e erosivas ou vasculite cutânea deve levar a uma investigação diagnóstica para possível malignidade subjacente.

A calcinose cutânea é definida como depósitos calcificados na pele e tecido subcutâneo. De acordo com os níveis séricos de cálcio/fosfato, pode ser classificada em quatro subtipos: distrófica, metastática, iatrogênica e idiopática.

“Mãos de mecânico” é caracterizada por hiperceratose, descamação e fissuras nos dedos ou mesmo das palmas das mãos.

A paniculite ocorre na forma juvenil e adulta, como nódulos endurecidos, isolados ou confluentes nos glúteos, braços, coxas e abdome.

Erupções vesicobolhosas podem se desenvolver, raramente, nas superfícies dorsais das mãos ou antebraços, e em outras áreas.

Artrite reumatoide

É a doença autoimune caracterizada por inflamação e desenvolvimento de deformidades articulares e pela associação com o fator reumatoide e com o anticorpo antipeptídio citrulinado cíclico de segunda geração.

As lesões não têm histopatologia típica de artrite reumatoide (AR), mas podem ser sugestivas. Os nódulos subcutâneos relacionados à AR incluem os nódulos reumatoides clássicos, a nodulose reumatoide acelerada e a reumatoide.

Nódulos reumatoides clássicos: lesões nodulares subcutâneas endurecidas únicas ou múltiplas, de tamanho variável, localizadas preferencialmente nas superfícies extensoras dos antebraços e cotovelos. Ocorre em 20 a 30% dos casos, no qual em 90% estão associados à presença do fator reumatoide em altos títulos. Tabagistas têm maior risco de desenvolvê‐los. Também podem ser observados sobre articulações dos dedos, região sacra, tuberosidade isquiática, tendão de Aquiles, região pré‐auricular e couro cabeludo.

Nodulose reumatoide acelerada: caracterizada por nódulos subcutâneos prévios (preferencialmente sobre articulações das mãos) que crescem súbita e rapidamente e são independentes da atividade da doença articular. Podem ser associadas ao tratamento da AR, preferencialmente o metotrexato.

Nodulose reumatoide: múltiplos nódulos subcutâneos sem a presença de AR grave e sem manifestações sistêmicas, mais comum em homens de meia‐idade (30 a 50 anos), autolimitados e benignos.

As manifestações vasculares da AR não são específicas. Seu protótipo é a vasculite reumatoide, que consiste numa vasculite leucocitoclástica de pequenos e médios vasos, por depósitos de imunocomplexos, que acomete tanto a pele quanto os vasos mesentéricos, sistema nervoso central e coração. Dependendo do calibre e da localização do vaso acometido, ela pode se manifestar como uma lesão macular ou papular purpúrica, púrpura retiforme, livedo reticular, nódulos subcutâneos e úlceras (geralmente perimaleolares). Infartos digitais secundários ao fenômeno de Raynaud também podem ser observados.

Dentro do grupo das lesões granulomatosas, a dermatite granulomatosa neutrofílica é manifestação suspeita de AR, porém rara. Se manifesta por pápulas eritematosas simétricas urticariformes, placas, nódulos ou bolhas em mulheres (2:1) com doença erosiva e altos títulos de FR (fator reumatoide), nas superfícies extensoras das articulações.

Doença de Still

Também conhecida como artrite idiopática juvenil (AIJ), é doença reumatológica que cursa com artrite de início na infância ou adolescência. Atualmente, é classificada em sete subtipos. O subtipo sistêmico da AIJ é o que cursa com lesões dermatológicas clássicas, que consiste numa erupção macular e papular morbiliforme ou urticariforme evanescente de coloração eritematosa a alaranjada, que ocorre durante os episódios de febre (usualmente vespertina) e pode preceder ou acompanhar a artrite. A histopatologia não é específica e demonstra infiltrado linfocítico e histiocitário esparso na derme superficial e perivascular.

Existe um tipo de doença de Still que se inicia no adulto, geralmente em mulheres antes dos 30 anos, no qual ocorrem as lesões evanescentes ou atípicas de apresentações clínicas diversas, como pápulas urticariformes, liquenoides, lesões semelhantes a dermografismo. Essas têm frequência estimada em 29 a 78% dos pacientes com doença de Still do adulto e, quando presentes, conferem pior prognóstico. Outras manifestações cutâneas associadas com a doença de Still descritas são: alopecia, dor cutânea, lesões acneiformes, prurido, granulomas não caseosos, lesões semelhantes a eczema, urticária, angioedema, vesicopústulas palmoplantares, eritema discrômico migrans e o eritema persistente generalizado.

Síndrome de Sjögren

Doença autoimune de etiologia desconhecida, pode ser classificada como primária (SSp) ou secundária (SSs), se associada a outra colagenose. Como não existem manifestações cutâneas específicas, é difícil que um dermatologista feche um diagnóstico conclusivo, já que a doença compartilha características clínicas e imunológicas inespecíficas com as outras colagenoses.

Dentre as manifestações cutâneas, pode-se citar: 1) síndrome sicca: xerostomia, xeroftalmia e xerose; 2) fenômeno de Raynaud; 3) vasculite cutânea: pequenos vasos (IgG/IgM), crioglobulinemia e eritema elevatum diutinum (raro); 4) lesões anulares antiRo (SSA) positivo; 5) amiloidose nodular cutânea localizada; 6) prurido; 7) fotossensibilidade; 8) dermatoses associadas: alopecia (areata), vitiligo, líquen plano, anetodermia, síndrome de Sweet, paniculite granulomatosa, eritema multiforme‐símile, eritema discrômico perstans‐símile e eritema nodoso‐símile.

Esclerodermia

É um termo que agrega série de doenças que se manifestam dermatologicamente com espessamento da pele. Pode pertencer a síndrome com manifestações vasculares, pulmonares, cardíacas e renais (sistêmica) ou ser localizada apenas na pele (local).

A esclerodermia sistêmica pode ser classificada como limitada ou difusa. No primeiro caso, tem-se o endurecimento da pele das extremidades distais dos membros, face (microstomia) e pescoço; telangiectasias; presença do anticorpo anticentrômero e maior risco de hipertensão pulmonar. Na difusa, há o endurecimento da pele da porção proximal dos membros e do tronco; evolução precoce para envolvimento cardíaco; pulmonar (fibrose), renal e gastrintestinal; atrito tendinoso; maior risco de crise renal esclerodérmica.

As manifestações cutâneas inespecíficas relacionadas à esclerose sistêmica são: capilaroscopia com padrão SD (sclerosis pattern) em 83 a 98% dos casos e de surgimento precoce; telangiectasias; calcinose cutis; discromias: hipercromia semelhante à doença de Addison, máculas hipo e hiperpigmentadas e leucodermia em “sal e pimenta” (que poupa a região perifolicular).

A esclerodermia localizada (também chamada de morfeia) é a esclerose de qualquer profundidade da pele, e não evolui para a sistêmica; 20 a 80% dos indivíduos com morfeia podem ter anticorpo FAN positivo, e este não se associa a maior risco de doença sistêmica ou a outra colagenose.

Doenças neutrofílicas


Tabela 2: Resumo das características clínicas e suas principais distribuições das doenças neutrofílicas. Adaptada de Sampaio et al., (2021).

Síndrome artrite‐dermatite associada ao trato gastrintestinal

É caracterizada por surtos recorrentes de lesões pustulosas (foliculares e não foliculares) e abscessos, sinovite, febre e sintomas gripais que se desenvolvem após procedimentos cirúrgicos do trato gastrintestinal ou em pacientes com doença inflamatória intestinal.

As lesões são recorrentes (a cada 4 a 6 semanas). Podem ser observadas máculas, pápulas e vesico‐pústulas eritematosas e purpúricas, nas extremidades proximais e no tronco. Também nódulos subcutâneos recorrentes dolorosos e eritematosos (é uma paniculite neutrofílica lobular), que curam com cicatrizes atróficas deprimidas. O eritema nodoso verdadeiro também é uma manifestação da doença.

Pioderma gangrenoso

É uma dermatose neutrofílica rara caracterizada por úlceras cutâneas rapidamente progressivas, que se expandem perifericamente, são dolorosas e apresentam bordas bem definidas de coloração eritematosa a violácea. Pode ser observado o fenômeno de patergia e, quando regride, a cicatriz atrófica adquire um padrão cribriforme.

Quaisquer doenças que se manifestam com úlceras entram no diagnóstico diferencial de pioderma gangrenoso, como a leishmaniose e a esporotricose.

Eritema elevado diutino

Vasculite leucocitoclástica cutânea rara que se apresenta inicialmente como pápulas eritemato‐violáceas que coalescem para formar placas eritemato‐amareladas, lembrando lesões urticarifomes. Essas tendem a surgir em áreas de trauma e a respeitar uma distribuição simétrica nas superfícies extensoras das articulações das extremidades e nos glúteos. O quadro pode estar associado a artralgias e artrite.

Também é relatada sua associação com doenças neoplásicas, autoimunes e infecciosas, destacando‐se a infecção pelo HIV, em que a apresentação clínica pode ser alterada com presença de lesões nodulares e envolvimento palmoplantar.

Púrpuras

Podem se associar tanto a doenças graves e potencialmente fatais quanto a condições crônicas comuns e benignas. Em ambos os casos, se caracterizam como manifestações não específicas de uma miríade de enfermidades. De qualquer modo, na maioria das vezes, uma boa anamnese e exame clínico associados a alguns exames laboratoriais são suficientes para sua avaliação.

Podem ser resultantes de um processo hemorrágico simples, uma hemorragia secundária a inflamação dos vasos e, por fim, uma hemorragia oclusiva com secundária inflamação mínima.

Vasculites

São consequência da inflamação dos vasos sanguíneos. Pode representar uma doença limitada à pele, uma manifestação de enfermidade sistêmica ou medicamento, ou uma patologia primária da pele com repercussão sistêmica. Podem ser causadas por infecções, medicamentos, neoplasias, doenças autoimunes e do tecido conjuntivo. Nesses casos, constituem uma alteração inespecífica ao agente causal. Entretanto, aproximadamente metade dos casos é vasculite leucocitoclástica idiopática.

As repercussões clínicas dependem da localização e do tamanho do vaso acometido. Podem ser classificadas em:

Vasculite primária: Classificadas em: de pequenos, médios vasos. Além de órgão único e de tamanhos variáveis. A apresentação clínica mais comum das vasculites cutâneas é a palpável, na região distal dos membros inferiores. As principais manifestações extracutâneas presentes são: artralgias e artrite, alteração renal e envolvimento gastrintestinal.

Artrite de Takayasu: é vasculite de grandes vasos; contudo, pode acometer vasos menos calibrosos. A inflamação evolui para um estágio de oclusão que pode levar a estenose ou formação de aneurismas. É mais comum nas mulheres e geralmente inicia na segunda e terceira décadas de vida. Na pele, pode causar púrpura, livedo reticular, lesões subcutâneas semelhantes ao eritema nodoso, eritema indurado, nódulos inflamatórios, nódulos necróticos e/ou ulcerados, gangrena digital, úlceras semelhantes ao pioderma grangrenoso, fenômeno de Raynaud, urticária, angioedema e eritema multiforme..

Arterite de células gigantes: embora raras, são classificadas como lesões isquêmicas consequentes à obstrução da artéria ou lesões geradas por outros mecanismos. Foram descritos induração, eritema e bolha no couro cabeludo e têmporas, glossite e necrose da língua, necrose do couro cabeludo, púrpura, gangrena distal dos membros, equimose periorbitária, edema na face e no pescoço, nódulos, granuloma anular.

Poliarterite nodosa: vasculite necrotizante de artérias de médio ou pequeno calibre sem glomerulonefrite ou vasculite de arteríolas, capilares ou vênulas não associada ao ANCA. Pode estar relacionada a infecções (hepatite B, hepatite C, M. tuberculosis, HIV, HTLV, parvovírus B19, citomegalovirose; e nas crianças, estreptococose), doenças inflamatórias, artrite reumatoide, fármacos (penicilina, minociclina). Os principais achados são nódulos subcutâneos, livedo reticular, púrpura e úlceras. Sintomas sistêmicos podem surgir em qualquer apresentação.

Doença de Kawasaki: é uma vasculite aguda que ocorre principalmente em crianças. O quadro, geralmente, começa com febre e exantema polimórfico de disseminação centrífuga, além de enantema orofaríngeo e língua em morango. Após alguns dias, surge descamação perineal e nas pontas dos dedos. A doença pode evoluir com vasculite e formação de aneurismas nas artérias coronárias.

Vasculites associadas ao ANCA: causam mais comumente a púrpura palpável; contudo, podem eventualmente apresentar livedo racemoso, eritema nodoso, nódulos subcutâneos e úlceras dolorosas.

Vasculites associadas a imunocomplexos: A vasculite por IgA é a relatada mais comumente em crianças (púrpura de Henoch Schönlein) e geralmente se apresenta como pápulas eritematosas que surgem de forma ascendente a partir da região distal dos membros inferiores e evoluem para púrpura palpável.

A vasculite crioglobulinêmica é causada pelo depósito de crioglobulinas nos pequenos vasos. A urticariforme hipocomplementêmica se apresenta com placas urticariformes que duram mais de 24 horas, são mais dolorosas que pruriginosas e deixam pigmentação local. Enquanto isso, as secundárias estão associadas a doenças sistêmicas.

Doenças granulomatosas

Tabela 3: Resumo das características clínicas e seus diagnósticos das doenças granulomatosas. Adaptada de Sampaio et al., (2021).