Introdução |
A creatina é um dos recursos ergogênicos* mais estudados e eficazes para atletas. Os mecanismos multifacetados pelos quais a suplementação exerce seu efeito benéfico incluem aumento da capacidade energética anaeróbica, diminuição da quebra de proteínas, levando ao aumento da massa muscular e do desempenho físico. Embora esses efeitos beneficiem o atleta, a creatina também pode servir como um potencial tratamento clínico e terapêutico complementar às intervenções médicas convencionais. Por isso, Kreider e Stout (2021) realizaram uma revisão sistemática com objetivo de fornecer revisões abrangentes do papel da creatina na saúde e no controle das doenças.
A Medicina Esportiva estabelece um conceito para o termo "agente ergogênico" que abrange todo e qualquer mecanismo, efeito fisiológico, nutricional ou farmacológico que seja capaz de melhorar a performance nas atividades físicas esportivas, ou mesmo ocupacionais.
> Benefícios gerais da saúde
Inicialmente, a maioria dos estudos se concentrou no papel da creatina no desempenho do exercício e adaptações de treinamento. Diversos estudos relataram que a suplementação a aumentou os níveis de creatina muscular, aumentando a capacidade do exercício e melhorando as adaptações do treino. A melhora de desempenho geralmente foi de 10 a 20% em várias atividades físicas de alta intensidade.
A creatina foi considerada o suplemento nutricional ergogênico mais eficaz disponível para atletas em termos de aumento da capacidade de exercício e massa corporal magra durante o treinamento pela Sociedade Internacional de Nutrição esportiva.
Ao longo dos anos, diversos estudos começaram a analisar os benefícios da creatina na saúde. A este respeito, foi relatado que a suplementação ajudou a diminuir o colesterol, triglicerídeos e/ou controlar os níveis de lipídeos no sangue, reduzir o acúmulo de gordura do fígado e melhorar o controle glicêmico. Além disso, também foi capaz de diminuir a homocisteína, reduzindo assim o risco de doença cardíaca, minimizar a perda óssea, reduzir o progresso de algumas formas de câncer, melhorar a função cognitiva e a eficácia de alguns medicamentos antidepressivos.
Papel da creatina no envelhecimento das populações |
> Massa muscular, força e composição corporal
A sarcopenia é uma condição muscular relacionada à idade caracterizada por uma redução na quantidade muscular, força muscular e capacidade funcional. Embora multifatorial, pode ser causada por alterações na cinética da proteína muscular (síntese e degradação), função neuromuscular, inflamação, atividade física e nutrição. Várias intervenções nutricionais e de exercícios foram sugeridas para neutralizar a condição em idosos, incluindo a suplementação de creatina durante o treinamento de resistência. Por exemplo, Brose e colaboradores (2003) relataram que pacientes que ingeriram 5g desse aminoácido por 14 semanas durante o treinamento tiveram maiores ganhos de massa muscular e força muscular isométrica em idosos (> 65 anos).
Em sintonia, Candow e colaboradores (2008) relataram que a suplementação de creatina (0,1 g/kg/dia) e proteína (0,3 g/kg/dia) aumentou a massa muscular e a força enquanto diminuiu a degradação proteica e os marcadores de reabsorção óssea em idosos.
Por fim, Chilibeck e colaboradores (2015) descobriram que mulheres na pós menopausa que utilizaram o suplemento (0,1 g/kg/dia) durante 12 meses de treinamento de resistência tiveram um aumento da força e a densidade óssea.
Sendo assim, a maioria dos estudos afirmaram que a suplementação de creatina, quando combinada com exercícios de resistência, pode ajudar a manter ou aumentar a massa muscular e a força em idosos e, portanto, servir como uma medida para atenuar a sarcopenia.
Além disso, à medida que as pessoas envelhecem, muitas ganham peso, levando-as a fazer dieta para novamente promover sua perda. Infelizmente, isso geralmente leva à sarcopenia, o que seria contraproducente em idosos. A suplementação de creatina associada à uma dieta de restrição calórica pode ser uma estratégia eficaz para manter a massa muscular, promover a perda de gordura e ajudar a controlar a obesidade. Para investigar tal afirmação, Forbes e colaboradores (2019) conduziram uma metanálise sobre os efeitos da creatina na composição corporal e descobriram que a suplementação pode não apenas ajudar a manter a massa muscular, mas também promover a perda da gordura. Sendo assim, essa estratégia pode ser útil na prevenção ou no controle da obesidade.
> Função cognitiva
Foi relatado que a suplementação de creatina aumenta o conteúdo de fosfocreatina (PCr) cerebral em 5 a 15%, aumentando assim a bioenergética cerebral. Consequentemente, diversos estudos examinaram se esse aminoácido afetaria a cognição, a memória e/ou a função executiva em idosos, bem como em pacientes com comprometimento cognitivo leve. Vários descobriram que a suplementação atenuou a fadiga mental e/ou conseguiu melhorar a cognição, função executiva e/ou memória.
Por exemplo, Watanabe e colaboradores (2002) descobriram que pacientes que ingeriram 8g diárias de creatina por 5 dias tiveram um aumento da utilização de oxigênio no cérebro e redução da fadiga mental. Enquanto isso, outro estudo descobriu que a suplementação melhorou a memória de trabalho e a velocidade de processamento (Rae e colaboradores, 2003).
Sendo assim, embora sejam necessárias mais pesquisas, Kreider e Stout (2021) concluíram que a suplementação pode aumentar o conteúdo de creatina no cérebro e/ou apoiar a função cognitiva.
> Controle de Glicose e Diabetes
A absorção de creatina é influenciada pela glicose e insulina. Além disso, estudo relataram que a suplementação ajudou a prevenir declínios no transportador GLUT-4 durante a imobilização enquanto aumenta o GLUT-4 em 40% durante a reabilitação após a atrofia. Por isso, diversos estudos avaliaram se a suplementação de creatina influenciaria no controle da glicose.
Gualano e colaboradores (2011) avaliaram os efeitos da suplementação de creatina (5 g/dia por 12 semanas) durante o treinamento em participantes com diabetes tipo 2. Os pesquisadores descobriram que a ingestão do aminoácido melhorou a tolerância à glicose, aumentou a translocação de GLUT-4 e promoveu uma redução significativa nos níveis de HbA1c.
Com base nessa literatura, Kreider e Stout (2021) concluíram que a suplementação de creatina pode apoiar o controle saudável da glicose.
> Doença cardíaca
A creatina e a PCr desempenham um papel importante na manutenção da bioenergética miocárdica durante eventos isquêmicos. Por esse motivo, pesquisadores avaliaram o papel desse aminoácido na redução de arritmias, danos relacionados à isquemia e/ou função cardíaca em indivíduos com insuficiência cardíaca crônica.
Balestrino e colaboradores (2016) avaliaram os efeitos da adição de PCr a soluções cardioplégicas durante a isquemia miocárdica. Os pesquisadores descobriram que a sua administração melhorou a disponibilidade de energia para o coração, reduziu a incidência de arritmias e melhorou a função miocárdica. Da mesma forma, Sharov e colaboradores (1987) relataram que a administração exógena de PCr protegeu contra a isquemia no coração.
Além disso, diversos estudos relataram algum benefício da suplementação oral de creatina em pacientes com insuficiência cardíaca que participam de programas de reabilitação. Embora nem todos demonstraram os benefícios da suplementação, as evidências sugeriram que a administração de fosfocreatina e, possivelmente, da creatina apoiaram o metabolismo e a saúde do coração, particularmente durante os desafios isquêmicos.
Potencial papel terapêutico da suplementação de creatina |
> Deficiência na síntese de creatina
Alguns indivíduos nascem com raras deficiências nas enzimas ou transportadores relacionados à creatina (por exemplo, AGAT, GAMT e CRTR) que reduzem a capacidade de transportá-la para dentro da célula ou sintetizá-la endogenamente. Com essa deficiência, indivíduos com baixo teor de creatina cerebral foram associados à miopatias musculares, distúrbios do movimento, epilepsia, atrasos no desenvolvimento cognitivo e motor e autismo.
Nesses casos, a suplementação da creatina em altas doses e longo prazo seria uma estratégia nutricional interessante. Para investigar isso, Bianchi e colaboradores (2007) realizaram um estudo e descobriram que a introdução do aminoácido na dieta aumentou significativamente os níveis de creatina cerebral e PCr nesses pacientes.
Ademais, Stockler-Ipsiroglu e colaboradores (2014) avaliaram os efeitos da creatina monohidratada (0,3–0,8 g/kg/dia) em 48 crianças com deficiência de GMAT com manifestações clínicas de atraso global no desenvolvimento /deficiência intelectual, atraso na fala/linguagem e problemas comportamentais, epilepsia ou distúrbio do movimento. Os pesquisadores descobriram que a suplementação aumentou os níveis de creatina no cérebro e melhorou ou estabilizou os sintomas clínicos. Além disso, quatro pacientes tratados com menos de nove meses tiveram resultados de desenvolvimento normais ou quase normais.
Sendo assim, a suplementação a longo prazo em indivíduos com deficiência na síntese de creatina pode aumentar os níveis de creatina cerebral e PCr e reduzir a gravidade dos déficits associados a esses distúrbios.
> Doenças neurodegenerativas e distrofia muscular
Diversos estudos investigaram o benefício terapêutico de curto e longo prazo da suplementação de creatina em crianças e adultos com várias doenças neuromusculares como a doença de Huntington (DH), doença de Parkinson (DP), esclerose lateral amiotrófica (ELA) e, distrofias musculares (DM).
Um grande ensaio clínico conduzido por Bender e colaboradores (2016) em pacientes com DP, DH e ELA não encontrou resultados promissores. Eles monitoraram 1.687 participantes que suplementaram sua dieta com creatina e não observaram melhora estatisticamente significativa nos resultados dos pacientes com DP ou ELA. No entanto, em pacientes com HD, houve uma atenuação da atrofia cerebral, sugerindo algum benefício clínico potencial nessa população.
Por outro lado, os resultados em populações com distrofia muscular foram mais promissores porque o músculo foi o alvo primário. Para apoiar essa afirmação, Kley e colaboradores (2013) conduziram uma revisão sistêmica e descobriram que a suplementação de creatina de curto e médio prazo aumentou a força muscular em distrofias musculares e o desempenho funcional em distrofia muscular e miopatia inflamatória idiopática.
> Neuroproteção do cérebro e da medula espinhal
Diversos estudos avaliaram o impacto da creatina em lesões cerebrais traumáticas leves (TCE) e lesões na medula espinhal (LME). Por exemplo, Sullivan e colaboradores (2000) descobriram que a suplementação cinco dias antes do TCE diminuiu a quantidade de dano cerebral cortical em 36% dos ratos e 50% dos camundongos. Os pesquisadores atribuíram a redução do dano cortical a uma maior disponibilidade de energia. Além disso, outro estudo relatou que camundongos que receberam suplementação antes e após uma lesão medular moderada experimentaram menos tecido cicatricial e melhoraram o desempenho do teste de função locomotora (Hausmann e colaboradores, 2002). Embora esses estudos não possam ser realizados em humanos, eles sustentaram as alegações de que a creatina pode reduzir a gravidade do TCE e/ou LME.
Em humanos, diversos estudos demonstraram a melhora do treino em pacientes com LME que tomaram creatina. Por exemplo, Jacobs et al., (2002) relataram que a suplementação melhorou a capacidade de exercício aeróbico e o limiar anaeróbico ventilatório em pacientes com lesão medular cervical. Além disso, Amorim e colaboradores (2018) demonstraram que indivíduos com lesão medular que consumiram creatina (3 g/dia por 8 semanas) associada à vitamina D (25.000 UI/dia) enquanto participavam de um programa de treinamento de resistência experimentaram melhorias significativamente na força e capacidade funcional.
Enquanto alguns estudos não demonstraram os benefícios da creatina em pacientes com LME, há evidências que a suplementação pode reduzir a gravidade de concussões leves, TCE e/ou LME em modelos animais. De fato, essa evidência foi tão forte que a Sociedade Internacional de Nutrição Esportiva recomendou que todos os atletas envolvidos em esportes com risco de TCE e/ou LME deveriam tomar creatina para reduzir a gravidade desses tipos de lesões.
> Reabilitação
Como foi relatado que a creatina aumenta as adaptações ao treinamento de resistência, vários estudos examinaram se essa poderia melhorar os resultados da fisioterapia em lesões musculoesqueléticas. Hespel e colaboradores (2001) relataram que a suplementação promoveu aumentos no fator regulador miogênico 4 (MRF4) e na expressão de proteína miogênica, que foi associada a maior área de fibra muscular (+10%) e pico de força (+25%) durante a reabilitação.
Ademais, vários estudos relataram que a suplementação de creatina em pacientes com insuficiência cardíaca crônica e doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) melhorou os resultados reabilitativos. Por exemplo, Andrew e colaboradores (1998) descobriram que a suplementação em pacientes com insuficiência cardíaca aumentou a resistência muscular esquelética e atenuou a resposta metabólica anormal do músculo esquelético ao exercício. Ademais, um estudo em pacientes com DPOC relatou o aumento da massa magra, força e resistência muscular periférica com a creatina (Fuld et al., 2014). Finalmente, Neves et al., (2011) relataram que o aminoácido aumentou a massa magra de membros inferiores e a qualidade de vida em mulheres na pós-menopausa com osteoartrite de joelho submetidas a exercícios de fortalecimento.
Embora mais pesquisas sejam necessárias, há evidências de que a suplementação de creatina antes e depois da lesão poderia reduzir a imobilização atrofiar e/ou melhorar os resultados de reabilitação.
> Gravidez
Uma vez que a suplementação de creatina demonstrou melhorar a bioenergética celular durante condições isquêmicas e possuir propriedades neuroprotetoras, diversos estudos investigaram se o seu uso poderia ajudar a promover o desenvolvimento neural fetal e reduzir as complicações resultantes da asfixia no nascimento.
A justificativa para a suplementação durante a gravidez é que o feto depende da transferência placentária de creatina materna até o final da gravidez, e mudanças significativas na sua síntese e excreção ocorrem à medida que a gestação progride. Consequentemente, há uma maior demanda e utilização desse aminoácido.No entanto, as pesquisas sobre o papel da suplementação em mulheres grávidas foram limitadas.
Por isso, embora haja evidências de que a suplementação de creatina pode ajudar a atender às necessidades nutricionais e de saúde da mãe e do feto, deve-se ter cuidado ao recomendar o uso durante a gravidez.
> Suporte imunológico
Vários estudos indicaram que a creatina tem efeitos imunomoduladores. A esse respeito, alguns relataram que a suplementação pode alterar a produção e/ou a expressão de moléculas envolvidas no reconhecimento de infecções como os receptores toll-like (TLR). Outros demonstraram que a creatina influenciaria as citocinas possivelmente através da via de sinalização NF-κB, afetando os receptores e/ou fatores de crescimento que podem influenciar positiva ou negativamente a resposta imune.
Ademais, a redução induzida pela creatina de citocinas pró inflamatórias e outros marcadores de inflamação pode ajudar a explicar alguns dos benefícios neuroprotetores observados em pacientes com doenças relacionadas ao sistema nervoso central. Também pode explicar relatos de que a suplementação atenua o dano inflamatório e/ou muscular em resposta ao exercício intenso. Sendo assim, pesquisas adicionais são necessárias para entender os efeitos anti-inflamatórios e imunomoduladores desse aminoácido, mas está claro que o seu uso pode afetar essas vias.
> Propriedades anticancerígenas
Estudos mostraram que o conteúdo de creatina e a disponibilidade de energia são baixos em vários tipos de células malignas e células T que medeiam as respostas imunes contra o câncer. Além disso, a expressão do gene SLC6A8, responsável pelo transporte de creatina, aumenta acentuadamente em células imunes infiltrantes de tumor.
Com isso, Patra e colaboradores (2012) observaram que a eficácia da medicação anticancerígena metilglioxal (MG) aumentou significativamente na presença de creatina e que a administração de um combinado de creatina, metilglioxal e ácido ascórbico proporcionou maior eficácia ao fármaco e eliminou sinais visíveis de crescimento tumoral. Além disso, o aminoácido, que era baixo no tecido do sarcoma, foi significativamente elevado com a regressão concomitante das células tumorais.
Ademais, Di Biase e colaboradores (2019) relataram que a deficiência de captação de creatina prejudicou gravemente as respostas das células T CD8 ao desafio tumoral in vivo e à estimulação antigênica in vitro, enquanto a suplementação suprimiu significativamente o crescimento tumoral em vários modelos de tumor em camundongos. Assim, os pesquisadores concluíram que a creatina é um importante regulador metabólico que controla a imunidade das células T antitumorais e que a sua suplementação pode melhorar as imunoterapias de câncer baseadas em células T.
Assim, Kreider e Stout (2021) concluíram que a creatina é uma importante fonte de energia para as células imunológicas, pode ajudar a manter o sistema imunológico saudável e tem capacidade de ter algumas propriedades anticancerígenas.
> Antidepressivos
Desde o início da década de 1980 estudos sugeriram que o metabolismo e/ou a disponibilidade da creatina podem ter efeitos antidepressivos. Por exemplo, o precursor da creatina SAMe foi relatado como um tratamento eficaz para a depressão clínica (Silveira e colaboradores, 2003). Ademais, Ahn e colaboradores (2016) relataram que um único tratamento do aminoácido ou exercício tem efeitos parciais como antidepressivo em camundongos com depressão leve crônica induzida por estresse e que a combinação das intervenções promoveu maiores benefícios.
Há algum suporte em testes em humanos de que a creatina pode afetar a depressão. Por exemplo, Bakian et al., (2020) avaliaram recentemente os padrões alimentares do banco de dados da Pesquisa Nacional de Saúde e Nutrição e encontraram uma relação negativa significativa entre a suplementação e a depressão entre adultos nos Estados Unidos. Sendo assim, embora sejam necessárias mais pesquisas, algumas evidências sugeriram que esse aminoácido pode ajudar os indivíduos a controlar alguns tipos de depressão e/ou transtornos de ansiedade.
Conclusão |
Embora pesquisas adicionais sejam necessárias para explorar os potenciais benefícios terapêuticos da suplementação da creatina, o seu uso tem vários desses já comprovados.